Filosofar na Amazônia: uma experiência dionisíaca - Parte I
Para mim a imagem da Filosofia não é aquela do pensador de Rodin, mas sim a do garimpeiro!
O pensador pensa, mas onde ele está?
Já o garimpeiro, esse sim, ele está a batalhar o mundo!
A imagem do garimpeiro é uma das máscaras da região amazônica. Máscaras são locais simbólicos, são apreensões de sentido que criamos. Somos seres criadores, amantes das máscaras.
O garimpeiro, geralmente, é um homem que sai de uma terra amada em busca de sucesso, se arriscando em terras longínquas e inóspitas. Sucesso e riqueza, ele quer o que todos queremos...
É errada a ideia de considerar o garimpeiro mal intencionado. Muitas vezes ele não é pessoa ruim, ao contrário, pode ser uma pessoa determinada, inteligente e gentil. Simplesmente ele soube do potencial de um lugar, e vai para lá explorá-lo. Nós não exploramos os animais, a natureza e uns aos outros?
Mas o garimpeiro chega ao lugar, e se somos cidadãos do mundo, como pensavam os gregos helênicos, o esforço desse homem por chegar "ali", se instalar, se acostumar e ser feliz, parece facilitado diante do inusitado amor que encontra por uma terra tão nova.
O salto no escuro, a escolha intuitiva de se lançar a viver por uma decisão tão injustificada. O garimpeiro é feliz, pois preparado para a selva, preparado para o desconforto, nela, ao contrário, encontra o mais gozoso acolhimento.
Então, de explorador a explorado, o garimpeiro fica por ali e é sugado por essa mina, pois ele e ela são um só quando, de uma outra metáfora, como aquela do desencontro de duas águas heterogêneas, há a explosão da beleza estética mais incrível que poderíamos ver: nada mais nada menos que o encontro das águas!
Ficar ali, ser sugado pelo lugar, e oscilar entre continuar a alcançar riquezas ou cuidar deste mesmo lugar a ser explorado. Esta é a controvérsia que circunda todo aquele que se lança ao mar de dúvidas e incertezas quando vai viver em um lugar novo.
Temos sempre a intenção de fazer do mundo nosso pátio, mas ao tentar brincar, usar este mundo, somos, por vezes, sugados e transformados por esta atmosfera tão favorável à felicidade.
Filosofar na Amazônia é algo como esta alusão ao garimpeiro e ao encontro das águas
Nós, filósofos preparados pela tradição grega/europeia, tão acostumados às leis e contradições do capital, nós chegamos na Amazônia tal qual o salto no escuro de todo aquele que começa a filosofar.
Hipocrisia a parte, temos sim, em um primeiro momento, intenção de fazer riqueza e retornar para um lugar que acreditávamos ser nosso. Mas... eis o tempo e seus ventos! A floresta é traiçoeira e nela tudo pode acontecer. Mas ela é assim, traiçoeira, para os desavisados, para os que nela não sabe viver.
O verdadeiro adjetivo da floresta é o acolhimento.
Filosofar na Amazônia não é fazer antropologia filosófica a partir de conceitos e vivências dos indígenas, pois nesta área, eles são um mundo e nós somos outro.
Filosofar na Amazônia é mais, nos parece, ser arrebatado por impulso criador e acolhedor. Ali se estabelece uma terceira categoria entre o ser/não ser, é mais como o encontro das águas, pois o ser é e continua sendo, e um não ser que não se oculta, toca o ser e fica por ali, ambos se acomodando tão bem que na disputa de um com o outro, um rio se faz e fica - "ali".
O encontro das águas não está para a lógica e não está posto pela dicotomia ser/não-ser, mas é um "ali".
Neste "ali", na coabitação de uma autonomia para além do ser e do não-ser, fazer mundo é a criação originária e arrebatadora de fazer o "ali". O "ali" é um lugar de morada do controverso, de um impulso que faz mundo, faz sentido, e o estranho se acomoda tão bem que é impossível que entre o ser/não-ser, não aceitemos o "ali".
Local de morada, local de acolhimento, sua esfera de sentido leva o grego/europeu a filosofar. Filosofando, ele está a pensar coisas aparentemente banais, pelo menos segundo os critérios que norteiam nossas carreiras acadêmicas.
Que é o boto? Que golfinho é esse que se faz criança e brinca com o mundo e chama o usurpador a dançar com ele nas águas da Amazônia?
Ora, filosofar para além do salto alto é possível!!!
Entre teses de doutorado e uma infinidade de conceitos remastigados, praia nossa tão amada e confortável, ao filosofar na Amazônia somos assim, sugados para o "ali".
Mas efetivamente, aceitemos o fato que o filosofar confortável e o encontro com o "ali" é aceitável, e, assim, a dicotomia se desfaz tão logo pensemos que o filosofar é universal.
A filosofia vivida sob a esfera da Amazônia é pensada por nós como aquela que remete ao "ali".
O "ali" é tomado com um acolhimento do explorador sendo vivido pelo encontro das águas. Entre o ser/não-ser, há, pois, o "ali".
As categorias filosóficas clássicas clamam pela ordem e clareza das razões. Somos filhos do método, Descartes é nosso pai. Mas como bons filhos, seguimos o preceito de Descartes e nos lançamos ao mundo, como viajantes em busca por quebrar nossos preconceitos.
Mas isso é estranho, pois quando saímos em viagem queremos algo, ainda que não saibamos bem o que queremos.
Diante de um mundo pós-cartesiano, se pensamos o mundo como nosso lugar de consciência, na Amazônia não é por esta lógica que nos mantemos no "ali". Pensar o capital, pensar a lógica do mundo capitalista, pensar em como não destruir a natureza por nossas regras de convivência tão marcadas pela ganância e pelo luxo, este não é um problema da Amazônia, estes são problemas nossos!
Na floresta, nós que estamos no meio dela e só a conhecemos pelo acolhimento de sua esfera social, ela é uma inspiração, pois quem realmente a vive são os indígenas originários e os ribeirinhos, que "ali" estão e nos recebem bem, embora saibam que temos um âmbito de garimpo. Mas o garimpo não é ruim, ou totalmente ruim, como dito anteriormente, o garimpeiro quer o que todos almejam, a riqueza. Mas neste encontro com as águas do rio branco, na figura singular do garimpeiro, nós somos ele e bebemos esta água e encontramos um outro acolhimento.
Terra de acolhimento, local dionisíaco. Certamente deus baco, se era grego não sei, mas certamente está ali na Amazônia brincando de fazer "alis". A embriaguez está tão presente que basta uma pisada na floresta, ou um passeio turístico pelas águas do rio, que este sujeito/cognoscente não sabe de nada, se é que sabia alguma coisa!
A destruição da floresta, tão defendida por nós ocidentais que queremos o dinheiro e o luxo, ela é permitida justamente porque há tanto acolhimento que ela se entrega inteira para nós! Sua defesa é simplesmente seu acolhimento, e seu acolhimento é justamente sua fraqueza, pois chegamos nela e podemos fazer o que queremos com ela. E podemos?
Há imagens que se expõem mas não se explicam. É, pois, no desencontro tão agradável e acolhedor do encontro das águas, por exemplo, que temos na floresta esta singular abertura de "alis". O lugar comum de um pertencimento singular, tal que a noção de abertura de sentido/mundo não pode ser aquela tão bem explicitada por Heidegger. O "dasein", aqui na Amazônia, não abre mundo, pois, ao chegar e estar defronte ao "ali", ele é subsumido.
Filosofar na Amazônia é algo assim, é como ler Descartes, Marx ou Heidegger e pensar sob outras esferas, sentindo, pois, que o filosofar é possível para além da cidade.
Aristóteles estava... certamente ele estava errado!
Filosofar na floresta é possível, ela está aqui, mas nós estamos nela?
Autor: Edgard Vinícius Cacho Zanette