A beleza do mundo e a beleza dos corpos se mostram por si, já a beleza do xadrez, da filosofia e da vida, estas exigem perturbação.
A filosofia nasce da falta: queremos algo que não temos!
O amor pelo conhecimento é uma carência insana: como amar algo que não temos?
O filósofo é um sujeito peculiar...
Ocorre que queremos o conhecimento, mas não sabemos, até então, que é o conhecimento... Mas esta insanidade é fundamental.
A fanfarrice no mundo, a suspeita de que as coisas não são o que parecem, a solidão em um mundo com bilhares de pessoas, a desordem apática de pátrias sem educação.
A volúpia do xadrez e da filosofia, nos dias atuais, é uma liberdade que doa sentido sobre um vazio.
A razão abre espaço para sua própria transgressão, pois nossa mente, tratada metaforicamente como um armário, ela não deve ser preenchida de modo automático e irrefletido.
O pensar nossa própria experiência pessoal é uma arte de cultivar o espírito. No reconhecimento desta nossa subjetividade, toda transgressão do pensamento propõe substituir a ausência de sentido.
É necessário selecionar, saber pensar, tal qual fazemos ao organizar e reorganizar este nosso próprio eu!
Neste ponto discordo de Nietzsche. Nosso eu não é como um teatro em que personagens entram e saem, de acordo com a peça. Temos marcas, nossos personagens ficam em nós, ainda que possamos modificá-los e aperfeiçoá-los...
A arte de pensar visa, sempre, um ultrapassar nossa ignorância - transgredir pelo pensamento é fazer de nossa experiência singular um lugar de aperfeiçoamento.
A transgressão do pensamento é o próprio pensamento se pensando.
Só há pensar na transgressão – Pois se pensássemos sempre as mesmas coisas, seríamos desprovidos de criatividade e aprendizagem.
Todo filósofo quer conhecer para além do limite, e esta atitude é, em certo sentido, egoísta.
Assim como todo enxadrista, egoísta que ele é, sempre quer vencer...
O outro como obstáculo, diante de todo desafio pessoal, as vitórias são atos de violência. A ética é o limite desta transgressão, mas nem sempre a ética consegue fazer barreira à violência.
O próprio pensar é algo violento...
Mas que é o pensar ele mesmo?
A inteligência artificial é pensamento?
Os computadores reproduzem dados ou jogam xadrez?
Lembremos que existem computadores mais capazes de jogar xadrez que nós...
Aparte as controvérsias dos Matchs Kasparov-Deep Blue, ao jogar xadrez, tudo indica que fomos “ultrapassados pela máquina”.
Somo seres débeis, limitados e finitos...
Então, por quê continuamos perdendo nosso tempo praticando e pensando o xadrez?
Acontece que não apenas jogamos xadrez: pensamos ao jogar xadrez pensando!
O prazer estético, a surpresa da descoberta, um tanto de esporte e muito de ciência, o jogo como prática social, todos estes elementos fazem do xadrez mais que uma ilustração robótica.
O xadrez poderá ser modificado, no futuro, diante de tamanhos conhecimentos que são agregados diariamente em nosso nobre jogo, mas dificilmente o xadrez morrerá.
O mesmo acontece com a filosofia.
Até a morte, como possibilidade da impossibilidade (Heidegger), ela acrescenta sentido àquele que se põe a filosofar e a indagar...
Após mais de dois mil e quinhentos anos de filosofia ocidental, tanto foi acumulado e muito produzido, mas ainda assim a filosofia é uma expectativa que continua abrindo espaços, e sua realização plena é mais um ideal filosófico que uma verdade constituída.
Toda dimensão esquecida, remontar a algo que ninguém pensou, encontrar a cereja do bolo, alcançar a filosofia que tudo explica, assim como dar o xeque-mate perfeito, tudo isso é uma forma egoísta de vencer o mundo.
Mas temos que ser, um pouco, egoístas...
Muitas vezes jogamos xadrez por mais de 8 horas seguidas com os amigos e queremos mais!
Estudar filosofia uma vida inteira e, por fim, alcançar a conclusão: “Só sei que nada sei” (Tal qual Sócrates!!!).
Filósofo-Enxadrista: ambos são seres pensantes por excelência!
O enigma do pensamento, em pensando coisas diferentes/afins, parte dos mesmos pressupostos.
É por isso que a preguiça intelectual limita o nosso ser... Quem não gosta de pensar dificilmente terá sucesso na filosofia ou no xadrez.
Mas pensar é chato porque cansa!
Claro que sim!
Mas não cansa fazer academia, praticar jiu-jitsu, fazer sexo, ou andar de bicicleta?
Viver exige esforço, pois o agradável nem sempre é o melhor...
Em um mundo escroto e preconceituoso como o nosso, pensar é preciso!
O triunfo da idiotice é expressão da proibição do pensamento.
Um tiro no escuro, uma flexa lançada sem direção...
Tal qual algo que escapa à razão, é a razão que se põe a filosofar e a querer decifrar as coisas...
Contra a desesperança das crises e dos hipócritas, toda saída construtiva e coletiva supõe uma atitude de pensamento...
Como não-parasitas, é necessário violentar o banal e pensar.
Ocorre que todo manifesto por uma defesa digna de nossa humanidade deve perpassar a valorização do pensamento, até porque, caso lembremos de René Descartes, diz o filósofo que jamais deixamos de pensar, pois nossa natureza é o pensamento!
Embora não precisemos ser “cartesianos”, o escândalo do pensamento é sim acessível universalmente.
Pensar todos podem, pois temos bom senso, isto é, todos temos a razão e, assim, todos pensamos.
Mas saber pensar é difícil, pois pensar para o aperfeiçoamento exige ao menos duas coisas fundamentais: talento e método.
É claro que existem pessoas que não precisam estudar: estes são os gênios – são o próprio talento personificado assombrando o mundo.
Para um gênio pensar e criar é algo simples e automático. Sua comunicação com o mundo é tal que ele abre sentido e faz do mundo seu parque de diversões.
Para os gênios tudo é mais fácil, pois suas mentes explodem criatividade e eles “automaticamente” inovam e consegue sucesso...
Já as pessoas normais, como eu, e talvez você, por exemplo, nós precisamos cultivar habilidades, e, assim, progredir metodicamente para alcançar sucesso.
Podemos lamentar nossa mediocridade ou aperfeiçoá-la...
Se o gênio já recebe informações e as associa de modo inovador e criativo, as pessoas normais precisam organizar suas informações de forma associativa, estabelecendo relações produtivas, de forma a dar sentido ao que é recebido, bem como repetindo habilidades e testando-as de forma continuada.
Pense em quando aprendemos tabuada pela primeira vez. Primeiramente repetíamos sem nenhum sucesso. Pouco a pouco progredimos, de forma a decorarmos as operações. Mais tarde conseguimos dominar certas operações.
Mas não devemos tratar a filosofia e o xadrez como a tabuada, pois este é um primeiro nível de conhecimento: a repetição-memorização. É necessário ir além!
No xadrez o valor absoluto das peças é, na prática, uma orientação imprecisa, pois o valor relativo, em cada situação, é o que orienta o bom enxadrista, que não vê o jogo mecanicamente...
A parte mais difícil é pensar as razões lógicas e profundas que orientam determinada ciência.
Toda ciência é um saber, e todo saber sério supõe uma estrutura de conhecimentos explicativos. Saber explicar algo é superar a superficialidade, a banalidade, o senso comum. O filósofo, em geral, é aquele com intenção de superar aparências, tal qual o enxadrista que se dedica a progredir, quer superar o nível principiante, entendendo o porquê do jogo...
Quando começamos a entender certas filosofias, para além da decoreba, assim como quando conseguimos pensar o xadrez para além do “come-come”, o xadrez torna-se uma espécie de prática filosófica.
Este é o ponto em que eu queria chegar: não é preciso ser mestre em xadrez para que sejamos pensadores do xadrez!
O fundamental, para aquele que almeja visualizar o xadrez como uma experiência existencial, como um instrumento para que possamos progredir intelectualmente, é que seja cultivada essa experiência de pensar o jogar pensando.
Na verdade, há que se pensar o xadrez como uma filosofia da experimentação.
Meu amigo, amante-viajante do xadrez – Joca de Deus! Ele brincou comigo me chamando de “filoenxadrista” – Tal que me desafiei a pensar: o que é um filoenxadrista?
Segundo meu entendimento, o “filoenxadrista” é um amante do xadrez-ciência. Ele é aquele que se propõe a indagar, estudar e tratar o xadrez como uma continuada experiência do pensamento humano.
Ele não apenas joga ou é bom jogando xadrez – Ele se propõe a indagar sobre o que é o xadrez!
Podemos aqui assinalar que existem campeões mundiais de xadrez que não sabiam explicar o jogo ou ensiná-lo, enquanto que existem treinadores de xadrez de elite que sequer chegaram a Grandes-Mestres, mas ensinam xadrez como ninguém!
Assim, há aqueles, como Capablanca, que foi gênio, teórico e campeão mundial...
Mas também há grandes teóricos que não se destacaram em nível mundial na prática do jogo...Dvoretski é um grande exemplo, o qual se destacou como treinador e não como enxadrista...
Também há aqueles como Nimzowitsch, por exemplo, o qual não se destacou ao ponto de ser campeão mundial de xadrez, mas teórico que foi, contribuiu de forma significativa na compreensão do jogo...
Entre Grandes-Mestres e não mestres, de todo modo, como prática social e filosofia existencial, o xadrez pode ser um aliado poderoso no aprimoramento de nosso ser e na busca pessoal pela felicidade.
Um bom princípio, para começarmos, é aprender a perder e saber ganhar!
Muitos são insuportáveis quando perdem, ou aterrorizam quando ganham!
Tal postura é tão nociva que já presenciei trocas de socos e chutes em partidas de xadrez!
Esta não é uma filosofia saudável....
A Filosofia nasce na Grécia por volta do século VI ac. Como tal, o filósofo é aquele que se põe a indagar, a perguntar, cultivando o espírito na perspectiva de alcançar a sabedoria.
O filósofo quer saber o “porquê”, tal como o enxadrista que observa uma partida de xadrez pela primeira vez, ele procura a intensidade da presença de um conhecimento essencial que deve estar ali, embora, no momento, como iniciante, ele só vê, mas não entende o “porque”.
O desejo de pensar, o “logos” como sentido, é uma palavra que remete a “reunir algo significativamente”. No cultivo do saber, o filósofo busca as causas e razões das coisas.
O mesmo ocorre em nossas vidas: ao longo dos dias, na história pessoal de nossa vida, seguimos experimentando coisas e registrando tais impressões em nossa mente. Quanto a isso tanto racionalistas quanto empiristas concordam.
Estes registros podem não ser significativos e podem não produzir associações. Por outro lado, quando bem experimentados, pensados, eles podem ser muito significativos e plenamente associativos.
Bons enxadristas em geral são bons em matemática e jogam bem pôquer. Também costumam saber estudar. Por que isso ocorre? Ora, o pensar é universal!
Quando aprendemos uma língua estrangeira, fica muito mais fácil, dizem os linguistas, aprender outras. A mente humana deve ser exercitada de forma associativa. Quando aprendemos algo no xadrez devemos aplicá-lo na vida, na filosofia, nas relações de amizade, e vice-versa!
Pensar de forma associativa é administrar de forma inteligente o que aprendemos no mundo, de forma a obtermos o máximo de sucesso em áreas distintas.
Algo que achei incrível na minha vida foi que em diversos momentos, pelas necessidades do trabalho como professor de filosofia, as vezes ficava meses sem jogar ou ver uma única partida de xadrez, mas ao me dedicar com afinco à filosofia, quando voltava ao xadrez, mantinha um excelente ritmo de jogo.
O xadrez, a filosofia, assim como o pôquer e a matemática, estas são atividades irmãs.
Ambas trabalham com as associações de pensamentos simples e complexos, os quais envolvem tomada de decisão, construções de dados lógicos, memória, concentração e método.
Mas para progredirmos nestes jogos, como “filoenxadristas”, tudo depende, pois, do modo como tratamos tais conteúdos em relação às nossas habilidades ordinárias e rotina de estudos.
Podemos ver as coisas como lixo, sem razões e esperança, ou podemos pensá-las e questioná-las de forma diferenciada.
Todo bom mestre espera que o discípulo progrida e que um dia o supere...
Como diziam os gregos, a filosofia é uma atividade indispensável para aquele que busca uma felicidade real.
Epicuro, filósofo grego helenista, dizia que a filosofia é como a medicina, deve curar as doenças da alma.
Nossa mente requer cuidados, pois Aristóteles é preciso ao explicar que o ser humano pode ser o melhor ou o pior de todos os animais!
O pensamento humano não é bom ou mau, ele pode ser o que dele fazemos.
Os fenômenos mentais, como sensações, percepções, ideias, decisões, etc., devem ser organizados significativamente, associados em diversos âmbitos e, principalmente, testados e aprimorados sistematicamente.
As decisões da vida ordinária, assim como as decisões filosóficas e enxadrísticas, elas devem ser observadas, testadas, corrigidas e aprimoradas metodicamente.
O bom estudioso da filosofia é irmão do estudioso do xadrez: além de praticar tais habilidades, eles são capazes de entender que por trás dos acontecimentos superficiais existem normas, princípios, regras e métodos que delimitam os mundos da experiência filosófica e da experiência enxadrística.
Todo bom enxadrista é “fominha” por jogar xadrez. Mas os bons estudiosos do xadrez, além do desejo contínuo de praticar o jogo, pensam sobre o próprio pensar que envolve o xadrez.
Embora acusado de conformista por aqueles que não entendem sua filosofia, Descartes possui um viés estoico muito interessante, ao mostrar que o ser humano, antes de tentar mudar o mundo, deve mudar a si mesmo.
Ora, como posso querer que o mundo seja melhor se eu, “filoenxadrista”, não busco ao menos progredir?
Interrogar sem cessar, ser chato, vivenciar os erros e sofrer com eles para extrair seu antídoto... O itinerário do filósofo, do enxadrista e das pessoas vivendo diante da morte, ele é o mesmo:
Pensem em um labirinto: a) podemos seguir em frente sem pensar, tateando de um lado ao outro, sem qualquer sentido; b) podemos planejar, testar os caminhos, e, assim, buscar uma saída, ainda que não saibamos se há uma saída do labirinto!
Não sabemos se há sentido para a vida para além da vida ela mesma!
Mas podemos dar sentido ao que temos, ainda que o sentido definitivo de todo sentido sempre seja um enigma...
É necessário atenuar a imbecilidade humana que é universal à maior parte de nós! Deixemos os gênios de lado e pensemos nossa própria ignorância.
O princípio do conhecimento, à la Sócrates, é reconhecer esta nossa ignorância.
Filosofia da humildade... que seríamos nós sem o pensamento? Só ele releva o limite, e todo momento soberano da humanidade passa por seu esplendor, bem como todo ato de extrema ignorância supõe sua carência.
Ir ao extremo do pensamento é o desafio da humanidade.
A suprema interrogação filosófica coincide com o pensar.
O próprio real é um revestimento do pensamento
Esgotar, violentar, exprimir, alcança-lo tal qual ele é...
Toda filosofia do cuidado supõe uma certa arte de bem pensar.
O momento do filosofar é um prolongamento da vida – e o enigma do pensamento é uma transgressão em busca de um fundamento.
Contemplação silenciosa do mundo, tal qual um jogo de xadrez, o ápice da filosofia é encontrar o pensar nele mesmo.
Mas enquanto não encontramos o próprio pensar, podemos desenvolver nosso próprio pensar.
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Autor: Edgard Vinícius Cacho Zanette