domingo, 7 de agosto de 2016

O círculo vicioso no processo educativo ou o macaco de Kafka e a educação filosófica



Como se educar filosoficamente?

É possível sermos autônomos através de uma educação filosófica?

Que mecanismos podemos utilizar para combater as adestrações educacionais do mundo contemporâneo?

Estas e outras questões são discutidas no Capítulo de livro que publiquei em "Estado e Cidadania: Reflexões sobre uma educação política e filosófica"

Este livro possui excelentes textos, e foi organizado pelos amigos Elemar Kleber Favreto e Francisco Rafael Leidens

Abaixo temos o link para conhecer/ou comprar o livro: "Estado e Cidadania: Reflexões sobre uma educação política e filosófica" - Org. Elemar Kleber Favreto e Francisco Rafael Leidens - Vários autores. 

Publicação do NEPTE/UERR

Link: http://ciadoebook.com.br/catalogo/estado-e-cidadania

CAPÍTULO VI:

O CÍRCULO VICIOSO NO PROCESSO EDUCATIVO OU O MACACO DE KAFKA E A EDUCAÇÃO FILOSÓFICA[1]


Edgard Vinícius Cacho Zanette


A controvérsia entre Kant e Hegel sobre o papel do ensino de Filosofia

            É conhecido por todos que tratam do tema, a controvérsia entre as abordagens de Kant e Hegel acerca do significado do ensino de Filosofia. Kant, na Crítica da Razão Pura, defende o filosofar como processo educativo, pelo qual é aberto a todos o exercício da razão como “talento que lhe é mais próprio”[2]. Segundo Kant, filosofar e autonomia não são supostos do exercício enciclopédico de um conhecimento apurado da história da Filosofia. O filosofar não se restringe ao ensino da história da Filosofia, mas se assentaria em um exercício que é imanente à atividade racional humana, que poderia sim estar desconexa da história do pensar em toda sua rigidez e sistematicidade.
Já Hegel, em seus Escritos Pedagógicos (HEGEL, 1991), fundamenta a prática filosófica sob uma lógica dialética, que é a manifestação do produto da história do pensamento em uma máxima universalidade, tal que a totalidade do conteúdo universal da Filosofia, como Filosofia do Espírito, alcance um nível enciclopédico, pois não haveria processo de pensar dissociado do conteúdo profundo manifesto por tal empreendimento.
            Nota-se uma possível dicotomia entre essas duas posições. Por um lado, para Kant, o saber imanente ao filosofar não se descolaria de seu fazer temporalmente lançado, sendo, pois, um exercício do pensar, e não um conteúdo a ser apreendido. Já a visão hegeliana, por sua vez, trata o conhecimento da Filosofia segundo uma sistematicidade teórica que jamais poderia estar dissociada de sua prática, visto que a história do Filosofar, como produto do pensar em sua máxima universalidade, é o que dá as bases para que a ação prática da educação filosófica possa acontecer na efetividade da vida escolar.
            Diante destes dois paradigmas, consideramos que a Filosofia, mais que nunca, deve ser radical em seu projeto de não aceitar um único e absoluto método como o detentor do título da verdade acerca do filosofar. Isto porque, tanto o ideal kantiano da autonomia da razão, quanto o filosofar lançado ao nível enciclopédico do saber, tal qual foi proposto por Hegel, contribuem com o ensino de Filosofia, cada qual segundo uma lógica própria e peculiar. Ora, mais que dizer que o filosofar autônomo e o filosofar direcionado pela história do pensar seriam contraditórios ou antagônicos, talvez seja mais vantajoso pensarmos que estes dois posicionamentos poderiam manter cada qual sua validade, sem esgotar ou aniquilar a validade do outro. Ademais, caso seja aceito um único método como a “verdade absoluta” do filosofar, como dar sequência ao mais próprio da Filosofia, que é atividade de abertura a novas questões e novas respostas? Neste caso, consideramos pouco atraente que o ensino de Filosofia seja definido seguindo os pressupostos destas ou outras pedagogias, sejam elas fundamentadas em um possível âmbito criador na ordem dos conceitos, ou de resistência supostamente fundamental a propor mudanças, os quais definiriam o objeto de investigação de antemão, sem perceber que o filosofar é a própria condição de possibilidade da liberdade do pensar. Com outras palavras, os círculos viciosos de tais pedagogias edificantes poderiam ser comparados com a jaula do macaco de Kafka, pois, como veremos adiante, se o ensino de Filosofia possui o papel de renovar, e, desse modo, se toda recolocação de velhas questões em disputa com as novas pelo professor de Filosofia, deve ser pautado, ao menos em um primeiro momento, com um desprendimento filosófico. Por que definir o significado do filosofar antes de colocá-lo em prática na ordem imanente à sua natureza, isto é, em sala de aula? Quem sabe, ensaiar uma boa resposta a esta questão esteja em pensarmos a Filosofia como um começo que partiria de um ceticismo inicial, o qual permite o questionamento democrático, e não dogmático na prática efetiva do ensino de Filosofia?

Qual a identificação entre a Filosofia e a Educação?

            Comumente há identificações entre a Filosofia e a Educação. Mas essa relação, que muitas vezes aparenta ser indissolúvel, clara por si mesma, torna-se um ponto de discussão quando, simplesmente, perguntamos: “Será possível falarmos de uma educação filosófica, isto é, de um processo educativo de si mesmo por meio da Filosofia?” (GALLO, 2004, p. 207). Como bem explicita Gallo, este conceito de educação filosófica é algo novo, que surge na história da Filosofia e que pretende ser extraído de um modo específico de se colocar filosoficamente, sobretudo pensado a partir de filósofos como Schopenhauer, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari, a saber: que só há educação filosófica através do pensar por si mesmo (Schopenhauer), ou pensando a partir da perspectiva de Nietzsche, formar-se homem é tornar-se o que se é.
            Sabemos que estes filósofos destoam entre si, pois cada qual pensa de um modo próprio e específico a noção de formação filosófica. Ademais, embora eles não se posicionassem diretamente como “filósofos da educação”, ou como pensadores de “educações filosóficas”, ainda assim, em vários momentos de suas obras, lampejam várias teses sobre a educação que nos trazem enormes possibilidades de reflexão, sobretudo no sentido de tratar a Filosofia de um modo "não manualesco" ou dogmático. Considerando este ponto como nuclear em nossa abordagem do tema, nos permitiremos examiná-lo segundo uma certa generalidade, de modo a nos voltar à questão da determinação de uma educação filosófica que possibilite o pensar por si mesmo, ou o tornar-se o que se é. Com outras palavras, é possível tornar-se o que se é pelo estudo da Filosofia?

A formação humana como projeto filosófico: Há identidade entre o filosofar e a formação do sujeito autônomo?

            A Filosofia nasce como um projeto do livre pensar. Desde os filósofos gregos, a atividade reflexiva-crítica propõe certo desprendimento, que geralmente rompe com as instâncias burocráticas estabelecidas. Ora, sendo este o caso, como a Filosofia pode ocupar o papel de ser parte curricular básica estabelecida e corroborada pelos tecnocratas do estado, que comumente estão preocupados em justificar índices e números? Sem desviarmos o olhar a esta importante questão, é fato que a aceitação da disciplina de Filosofia, no ambiente escolar, é quase que unanimidade entre professores e pesquisadores de Filosofia, nos dias de hoje, no Brasil. Posto isso, após lutas e longo ostracismo, a disciplina está no currículo obrigatório e deve cumprir requisitos e normas técnicas preestabelecidas. Diante desta nova realidade, de nossa parte, pensamos que, mesmo havendo a possibilidade de a Filosofia estar lançada no perigo da banalização e da burocratização paulatina de seus conteúdos e questões, de todo modo concordamos com a importância capital da inserção da Filosofia no espaço escolar. Porém, quando nos remetemos à questão da determinação do papel da Filosofia para a formação humana na escola, tudo indica que há duas questões propedêuticas que exigem especial atenção. Em primeiro lugar, cabe, pois, saber: qual Filosofia ensinar? A partir daí, temos que atentar ao método, isto é, qual o melhor método para ensinar Filosofia?

O macaco de Kafka ou a condição humana?

            Sílvio Gallo traz um interessante texto de Kafka para esta discussão, um conto intitulado: Um relatório para uma academia, publicado na Alemanha, em 1920, em um volume com outros contos, volume este intitulado “Um médico rural: pequenas narrativas”. Kafka conta a história de um macaco, que, na busca de atingir uma situação de vida um pouco melhor, decidiu tornar-se homem. Por meio da imitação, este macaco faria tudo o que os homens faziam, tal como: beber aguardente, fumar, entre outras coisas. Mas, essa nova situação alcançada pelo macaco, não o fez melhor que sua antiga condição existencial, pelo contrário, ela lhe era de tal modo repugnante que, quando possível, ele se permitia, por meio do sexo com uma macaquinha também adestrada, esquecer-se de toda essa nova condição e gozar, mesmo que por alguns instantes, de sua verdadeira natureza, ou seja, permitia ousar ser aquilo que se é.
            Dialogando com este conto de Kafka, sarcástico e agressivo com as instituições sociais, Silvio Gallo procura pensar que talvez a verdadeira situação da educação atual é exatamente a de uma deformação do que somos, contrariando a proposta de uma educação filosófica que fosse capaz de dar acesso à liberdade de pensamento. Voltando à metáfora do macaco, tal qual nós homens, no seio da escola deformadora, o macaco se conduziu, se colocou como um ente indeterminado a disposição de uma mudança total. Ao se entregar a outros totalmente alheios e estranhos para gozar de algum privilégio, ele sacrificou sua própria condição. Resumindo, ele se ‘prostituiu’. Ora, quem sabe essa não seja a atual condição da educação posta nas escolas? Talvez a educação atual não seja uma forma, dizendo metaforicamente, de uma prostituição em massa da própria humanidade, com vistas a uma falsa ilusão de melhoria existencial?
            Pensando nestas críticas e metáforas, qual o verdadeiro ganho do macaco ao permitir que lhe adestrem? Em que consistiu sua mudança? Valeu a pena todo o seu esforço em transformar sua própria natureza? Será que o macaco não trocou de jaula? Ou, quem sabe, tornou sua situação mais penosa, pois além da jaula ser outra que o seu antigo habitat natural, ele também não teria deixado de ser ele mesmo, perdendo, de um só golpe, tudo o que ele possuía?
            Retomando estas reflexões e fazendo outras analogias com a metáfora do macaco, Silvio Gallo apresenta algumas teses que insistem nesta transgressão, nesta dissolução do indivíduo promovida pela educação deformadora. Foucault é um dos teóricos que teria apontado na pedagogia moderna o seu papel de submeter, em série, todo e qualquer indivíduo a um unívoco conceito de disciplina, o que levaria, por conseguinte, a constituição de uma “[...] poderosa máquina de produção de subjetividades em série” (GALLO, 2004, p. 211). Deleuze e Guattari procuraram mostrar que a escola capitalista transformou-se “[...] numa máquina de Estado, a seu serviço e seu instrumento” (GALLO, 2004, p. 211). O filósofo anarquista William Godwin problematizou a questão de que os sistemas escolares, tais como geridos pelos “homens de estado”, teriam a função de reforçar a manutenção do sistema instituído. Althusser, por sua vez, denunciaria que a escola capitalista é um grande e horripilante aparelho ideológico em defesa do Estado. Para Louis Althusser, um dos mais importantes e inovadores intérpretes de Marx na França, em seu artigo, transformado em livro, Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado (1970), é fundamental a visão de que toda educação pós-revolução industrial é sempre ideológica. Finalizando este primeiro momento de seu artigo, Gallo lembrou a famosa banda inglesa Pink Floyd que, ao apresentar várias críticas à educação capitalista, a tratou como se fosse uma fábrica de alienados em série, formados para exercer um único papel: viver como coisas completamente destituídas de subjetividade. Assim, homens e crianças se tornariam não mais que tijolos que formam, sustentam e elevam esse grande muro chamado Estado.
           



Pensando em uma possibilidade de saída da jaula

            Pensar uma saída dessa lastimável situação é apontar para um objetivo diferente para o papel da Filosofia e da educação. Melhor dizendo, é apontar um caminho para colocar a Filosofia em seu devido lugar, isto é, como capaz de formar espíritos livres, reflexivos e críticos. Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o papel da Filosofia é a formação de cidadãos. Porém, aqui nos encontramos diante de um paradoxo, visto que se a Filosofia e a educação filosófica manifestam uma proposta emancipadora, a educação, em sua generalidade, tem por finalidade a corroboração do sistema atual, e não a possibilidade de os alunos serem o que são, no sentido, por exemplo, do que Nietzsche afirmava ser o papel do verdadeiro homem, o de ser o escultor e o mestre de si mesmo.
Para Sílvio Gallo, a concepção de uma pedagogia da cidadania é, por isso, o grande muro a ser derrubado por uma Filosofia para a vida, com o papel de ser eminentemente útil aos homens, mas esta utilidade é vista, pelo autor, nas entrelinhas de sua exposição, como uma formação que tenha o papel de questionar, e, em última instância, derrubar o sistema vigente.
            Neste caso, a noção de educação filosófica é tratada por Gallo a partir de três pontos norteadores, claramente embasados no pensamento deleuziano, são eles: 1) Como pensamento crítico; 2) Resistência; 3) Criação e recriação de conceitos. Embora consideremos os três elementos interessantes, o tratamento dado por Gallo ao segundo ponto nos parece problemático. Isto porque se os três elementos são fundamentais, de modo a serem trabalhados em sala de aula e poderem contribuir à experiência educativa da Filosofia, a ideia de que o ensino de Filosofia é um movimento de resistência e de ação parece destoar da liberdade própria à Filosofia, a qual pode ou não manifestar-se enquanto um agir político e ideológico mais ativo na sociedade. Há o âmbito teorético da Filosofia, e este é tão fundamental quanto às Filosofias da praxis, por exemplo, a de Karl Marx. Ora, a determinação da utilidade da Filosofia como um agir filosófico, que não é distante da humanidade e da política, não precisa estabelecer que o âmbito teorético rígido da Filosofia, como tomamos a liberdade aqui de defini-lo, seja algo intocável ou que pertence a uma história que lhe é própria.
            Tendo em vista a noção de educação filosófica, para o nosso posicionamento ser bem compreendido, podemos reformulá-lo da seguinte maneira: Por uma questão de princípio, o pensar colocado em marcha não deve estar, a priori, determinado por qualquer ideologia filosófica. Isto porque se a atividade de filosofar estiver definida de antemão, o resultado é que acabamos por derrubar o mecanismo gerador pelo qual é possível a irrupção de várias discussões ideológicas abordadas no ambiente escolar de forma livre. Ora, é a experiência imanente ao ensino de Filosofia que propicia a abertura de horizontes para o pensar. É esta atividade criadora, marcada pela diversidade, que mostra a riqueza do ensino de Filosofia, a partir da abertura ao contraditório.
 Assim sendo, é por meio desta liberdade própria ao filosofar que o professor pode ter como ideal a possibilidade de que o aluno, subjetivamente, desenvolva suas próprias concepções filosóficas sem a necessidade de estar amparado ideologicamente em uma posição pró ou contra o sistema. A educação filosófica não deve estar amparada em um horizonte pré-reflexivo, dado que seria anterior à atividade filosófica em sala de aula. Neste sentido, consideramos que o filosofar não deve ser simplificado a funcionar como um arsenal de guerra, ou de formação em massa, seja de “cidadãos conscientes” pró-sistema vigente, ou seu oposto, isto é, a formação em massa de uma “classe revolucionária”, seja ela anarquista, comunista, etc.
            Segundo Gallo, a educação filosófica é uma Filosofia para a vida, tendo o papel de ser útil e propor resistência ao sistema vigente. Todavia, nos perguntamos se esta exigência de utilidade não seria uma imposição de fora da natureza própria da Filosofia, pois o que efetivamente define esta disciplina em prender-se a esses tipos de pressupostos teleológicos? E se o ensino de Filosofia tiver a necessidade de ser útil, em que consistiria essa utilidade e quem a determinaria? Seriam os burocratas do Estado? Seriam os que somente concentram seus esforços em se opor à máquina estatal? Ou seriam as exigências mercantilistas do capital? Ou uma teoria filosófica em detrimento de outras?
            A questão da utilidade da Filosofia precisa ser muito bem discutida, pois, quem sabe, a Filosofia pode ser muito útil sem ser usada como ação política ou ideológica. Por que o útil precisa ser determinado a ser utilizado de forma independente de sua própria ação, que lhe é mais íntima, que não é outra senão a atividade de pensar? Quem sabe a Filosofia tem essencialmente uma utilidade, mas não tenha a finalidade de contribuir de forma externa ao sujeito, e sim internamente, enquanto uma passagem que produz a mudança de si mesmo e nada mais?

A Filosofia e seu ensino: Qual o papel transformador imanente ao ensino de Filosofia?

            Considerando esta breve incursão, realizada neste capítulo, acerca da noção de educação filosófica, acreditamos que o papel transformador da Filosofia não pode estar limitado em uma única e fechada concepção, seja ela teórica ou prática. O verdadeiro ponto de convergência entre teoria e prática é o homem, na medida em que ele é posto como o sujeito que se constrói de inúmeras formas distintas, seja no âmbito prático, no âmbito teórico, ou em ambos. Se um homem, ao menos conceitualmente dizendo, é livre e possui vontade e querer, ele pode ser o escultor de si mesmo de inúmeras formas distintas. Ora, porque reduzi-lo à necessidade de transformar o mundo como um revolucionário profissional, quando ele pode, caso queira, transformar apenas a si mesmo, que mal haveria nisso? Se, por um lado, a educação que defende os interesses do Estado muitas vezes é opressora, por outro lado, uma pedagogia que se centra tão somente em denunciar a opressão do estado em nome de uma mal formulada educação contra a cidadania também não o seria? Será que essa necessidade de afirmar que a Filosofia é prática e que o seu papel é transformar toda a humanidade não seja hoje senão um grande entrave para o desenvolvimento de uma verdadeira educação filosófica? Será que a atribuição desse compromisso, que a Filosofia teria que transformar o mundo, não nos leva a um mal-entendido, que prejudique a liberdade da investigação filosófica?
            Na defesa de uma educação para o pensar por si mesmo, enquanto uma continuidade da capacidade humana de ser aquilo que se é, podemos nos voltar para a máxima de Sócrates, que propunha: “Conhece-te a ti mesmo”. Dizia Sócrates que este caminho, o do filosofar, pertencente a cada homem que procura a verdadeira Filosofia. A busca pelo conhecimento de si mesmo é a construção da própria identidade pela natureza da investigação filosófica. Enquanto for expressa uma subjetividade, cada homem, em sua particularidade, pode ser capaz de se lançar a uma ruptura radical com o mundo externo a si, sem ser “de-formado” para isso. Ora, podemos nos voltar ao sentido do que Montaigne dizia: devemos nos atolar em nós mesmos! A prática de uma educação filosófica está no desprendimento da Filosofia em tornar-se uma educação para a cidadania, tal como o conceito de cidadania é concebido pelo sistema, como aquele que, sem criticidade, segue leis e defende os interesses da classe dominante, mas, por outro lado, não pode reduzir-se ao seu contrário, no caso, tornar-se uma pedagogia de oposição ao sistema, simplesmente denunciando as limitações e os problemas da ordem vigente. Neste ponto em particular, toda e qualquer concepção de educação filosófica deve estar entre estes dois opostos e para além deles, combatendo seus extremos, buscando realmente promover, ao menos em um primeiro momento e por uma questão de princípio, um desprendimento que é imanente à atividade filosófica.
            Convém que o ensino de Filosofia seja dinâmico, multifacetado, com diversas posições sendo problematizadas dialeticamente por professores e alunos. O que estamos procurando mostrar não é que a Filosofia não tem aplicação na práxis, nas ideologias, na possibilidade de que os homens se organizem e lutem por seus direitos, contra os mecanismos de opressão. Mas, considerar que a possibilidade da práxis filosófica decorre de um momento primeiro, que pode ser teorético ou não, havendo sim a possibilidade de um desprendimento filosófico criador.
            Fundamental é o princípio, talvez, nos diria Descartes. Se o princípio da Filosofia está associado desde a Filosofia platônica à saída da caverna, não há como sermos arrancados dela, mas temos que nos levantar e caminhar solitários, ao menos nos primeiros passos e em um primeiro momento, passo a passo na consolidação de nossa própria liberdade. Há que haver o conflito; sem contraditórios, não há Filosofia. O princípio do ensino da Filosofia é a abertura para a multiplicidade, e não a instauração de um posicionamento ideológico pré-reflexivo. O conflito é um mecanismo gerador, já dizia o filósofo pré-socrático Heráclito. O famoso filósofo de Éfeso acreditava que tudo era governado pelo combate. Tanto a natureza (Physis, para os gregos), quanto as coisas humanas, só são o que são pela contínua discordância harmoniosa que governa todas as coisas. Temos, em alguns aforismos de Heráclito, uma amostra do seu interessante pensamento: “O Sol não apenas, como Heráclito diz, é novo cada dia, mas sempre novo, continuamente” (HERÁCLITO, Aforismo 6, 2000, p. 88); “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos” (HERÁCLITO, Aforismo 49a, 2000, p. 92); “O combate é de todas as coisas pai, de todas rei, e uns ele revelou deuses, outros homens; de uns fez escravos, de outros livres” (HERÁCLITO, Aforismo 53, 2000, p. 93). Estes fragmentos nos mostram a importância da divergência, que, tanto nas coisas humanas como no plano da natureza, acontece em contínua dialética, sempre se renovando. Ora, como sem o conflito não há vida, com a escola não poderia ser diferente. Assim sendo, cabe ao papel do ensino de Filosofia a iniciativa de ampliar os horizontes investigativos, em vez de determiná-los de modo a priori.

Sobre o papel de um ceticismo pedagógico na prática da educação filosófica

            Tendo em vista o exposto, podemos pensar a importância do embate entre as várias perspectivas contraditórias, como mecanismo gerador do âmbito escolar. Devemos lembrar que há, no seio da própria escola, no mínimo, uma dicotomia que não pode ser desconsiderada. De um lado, há a ação do sujeito em sua dimensão estrutural, na medida em que ele pertencente aos grupos sociais, estas estruturas o estagnam e o aprisionam, tal que chegam a determinar seu comportamento e seu saber. Em relação a este âmbito, estamos de acordo com Althusser e toda sua análise do papel da educação alienadora. Porém, diferindo de sua posição marxista, por outro lado, ainda consideramos que há o âmbito em que a escola é feita em suas nuances contraditórias, por alunos, professores, funcionários, comunidade, em todas as suas complexas inter-relações, em que há variadas formas de ações, ideias e tentativas destes membros da escola em resistirem e lutarem contra o âmbito estrutural burocrático ao qual a mesma pertence.
            Queremos insistir sobre esse ponto: não somos contra o movimento de resistência. Apenas acreditamos ser fundamental colocá-lo em seu devido lugar. No caso, este movimento de resistência não é dado a priori, mas é manifesto na própria vivência escolar. Assim, o filosofar dado na efetividade da vida escolar não pode ser definido de antemão, tampouco ensinado como um curso de Filosofia marxista ou algo do gênero. Neste âmbito da escola, as ações e construções reais são repletas de tramas, de situações, de estratégias individuais e grupais que transgridem as questões referentes ao sistema e forçam nossa atenção a pensar para além das estruturas sociais. Sendo assim, a escola ganha vida, é formada assistematicamente em carne e osso, ela se modifica continuamente, ela é vivida. Justamente por este fato, uma educação filosófica não pode reduzir seus conteúdos e suas possibilidades investigativas a serem engrenagens, sejam estas postas a serviço do sistema ou como de oposição a ele. As pedagogias filosóficas são instrumentos fundamentais, porém, elas não devem aprisionar a criatividade filosófica em um único e absoluto método. Ensinar e aprender Filosofia não deveria ser doutrinação ideológica, seja a favor de uma religião, a favor de um determinado regime político, seja contra uma religião ou contra um determinado regime político, ou mesmo a favor de uma teoria filosófica, ou de outra, etc.
            Aqui estamos propondo, de forma livre e assistemática, a valorização de um ceticismo pedagógico-filosófico como uma estratégia fundamental na postura do professor de Filosofia. Não que seja possível um desprendimento absoluto de nossos prejuízos, opiniões e ideologias, visto que estamos no mundo e partilhamos certas ideologias, preferências filosóficas, etc. No entanto, ainda que em certo nível possamos tomar o círculo vicioso da ideologização do saber como algo dado, ao qual estamos lançados a repetir e retificar, de todo modo, o professor de Filosofia pode sim se espelhar no procedimento cético para abordar suas aulas com o máximo possível de neutralidade, ainda que ser neutro em sentido absoluto, talvez, seja impossível. Ora, os céticos defendem que é possível não dogmatizar em sentido radical. Partindo desta visada, ensaiamos aqui pensar uma aproximação entre o que defendem os céticos pirrônicos e a prática da educação filosófica como mecanismo emancipador nos dias de hoje.
***
            De fato, não acreditamos que haja uma neutralidade absoluta entre alunos e professores de Filosofia, e isto não está em questão. Sempre existirão preferências ideológicas entre professores e alunos, pois eles são sujeitos históricos, que vivem historicamente em um mundo com inúmeras ideologias lutando dialeticamente entre si. Mas, a proposta do ensino de Filosofia, enquanto um ideal a ser perseguido, é sim a busca pela apreciação do diverso pelos alunos. Neste sentido, quem sabe o papel do ensino da Filosofia, antes de ser uma prática que represente uma ideologia, seja a construção subjetiva de si mesmo? Não que a prática, enquanto manifestação no mundo de determinado modo de compreendê-lo, não tenha sua importância, sem dúvida ela tem; entretanto, ela deve ser construída, com novas ideias e possibilidades, pelos alunos e professores de Filosofia, em suas mais diversas variações. A Filosofia pode ser útil, mas não deve ter sua utilidade pré-determinada por uma ideologia de fora da dimensão essencial do filosofar. Que o ensino de Filosofia seja criativo e tenha uma tarefa menos audaciosa, não exigindo que alunos e professores sejam mais esses defensores ou opositores do sistema. É necessário que alunos e professores possam viver a Filosofia sem estes rótulos político-pedagógicos. Sendo assim, o ensino de Filosofia, em toda a sua grandiosidade e/ou pequenez, está em uma posição capaz de promover que o aluno busque mudar antes a si mesmo que mudar o mundo, pois isso é algo dado à natureza humana e imediatamente acessível a todos. Neste sentido, Shopenhauer apresenta a importância do desenvolvimento do pensamento próprio:

A mais rica biblioteca, quando desorganizada, não é tão proveitosa quando uma bastante modesta, mas bem ordenada. Da mesma maneira, uma grande quantidade e conhecimentos, quando não foi elaborada por um pensamento próprio, tem muito menos valor do que uma quantidade bem mais limitada, que, no entanto, foi devidamente assimilada. Pois é apenas por meio da combinação ampla do que se sabe, por meio da comparação de cada verdade com todas as outras, que uma pessoa se apropria de seu próprio saber e o domina. Só é possível pensar com profundidade sobre o que se sabe, por isso se deve aprender algo; mas também só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profundidade (SCHOPENHAUER, § 1, 2007, p. 39).

            Pensar por si mesmo, enquanto exercício de uma educação filosófica, é experienciar as ideias filosóficas por si mesmo, subjetivamente, de forma livre e indeterminada, tal como é característico do sentido originário da palavra Filosofia. Historicamente, esta palavra é atribuída a Pitágoras de Samos, filósofo grego, que teria definido o filósofo como um amigo do saber. Uma educação filosófica só está em consonância com o sentido originário da Filosofia, se for desprendida ideologicamente. A amizade ou devoção, na busca pela sabedoria, possui duas características fundamentais que se entrecruzam. Em primeiro lugar, há uma entrega de quem possui amizade. Ela é um desprendimento de si mesmo no apreço por algo que é externo. Em segundo lugar, na realização desse desprendimento, dessa busca pela sabedoria, nos abandonamos a nós mesmos e continuamente nos tornamos outro que aquilo que éramos. Esse é um caminho sem volta e sem fim. Somos dominados por este desfacelamento de nós mesmos, promovido pela pesquisa filosófica. Por outro lado, o filosofar é a expressão mais pura e livre da vontade que possuímos em nos descobrirmos a nós mesmos. Como pensava Levinas, nós não estamos no paraíso mas nós estamos no mundo, e nesta condição imanente a todos, cabe a cada um questionar-se, como propõe Descartes no Discurso do Método e nas Meditações: o que é essa coisa que nós mesmos somos? Também é nesta aparente pequena proposta, mas carregada de sentido, que o ensino de Filosofia proporcionaria aos alunos que usufruam a possibilidade de pensarem o seu próprio pensar, tal como Aristóteles acreditava ser o papel fundamental da Filosofia.





[1]  Apresentamos, no I Congresso Latino-americano de Filosofia da Educação (www.alfe-Filosofiadelaeducacion.org.2011), uma primeira versão deste texto em uma comunicação, sob o título: “O macaco de Kafka e a educação filosófica: é possível sair da jaula?”. Este novo texto amplia a discussão e propõe uma reformulação em nossa abordagem acerca da noção de educação filosófica.
[2] Cf. Crítica da Razão Pura, 1983. Na versão da coleção Os Pensadores, o tema é tratado entre as páginas 407 a 409. Por sua vez, na paginação kantiana, a questão do ensino de Filosofia está exposta entre as páginas B-864 a B-869.