Como se educar filosoficamente?
É possível sermos autônomos através de uma educação filosófica?
Que mecanismos podemos utilizar para combater as adestrações educacionais do mundo contemporâneo?
Estas e outras questões são discutidas no Capítulo de livro que publiquei em "Estado e Cidadania: Reflexões sobre uma educação política e filosófica"
Este livro possui excelentes textos, e foi organizado pelos amigos Elemar Kleber Favreto e Francisco Rafael Leidens
Abaixo temos o link para conhecer/ou comprar o livro: "Estado e Cidadania: Reflexões sobre uma educação política e filosófica" - Org. Elemar Kleber Favreto e Francisco Rafael Leidens - Vários autores.
Publicação do NEPTE/UERR
Link: http://ciadoebook.com.br/catalogo/estado-e-cidadania
CAPÍTULO VI:
O CÍRCULO VICIOSO NO
PROCESSO EDUCATIVO OU O MACACO DE KAFKA E A EDUCAÇÃO FILOSÓFICA[1]
Edgard
Vinícius Cacho Zanette
A controvérsia entre
Kant e Hegel sobre o papel do ensino de Filosofia
É conhecido por todos que tratam do tema, a controvérsia
entre as abordagens de Kant e Hegel acerca do significado do ensino de
Filosofia. Kant, na Crítica da Razão Pura, defende o filosofar como processo educativo, pelo qual
é aberto a todos o exercício da razão como “talento que
lhe é mais próprio”[2].
Segundo Kant, filosofar e autonomia não são supostos do exercício enciclopédico
de um conhecimento apurado da história da Filosofia. O filosofar não se
restringe ao ensino da história da Filosofia, mas se assentaria em um exercício
que é imanente à atividade racional humana, que poderia sim estar desconexa da
história do pensar em toda sua rigidez e sistematicidade.
Já
Hegel, em seus Escritos Pedagógicos (HEGEL, 1991), fundamenta a prática
filosófica sob uma lógica dialética, que é a manifestação do produto da
história do pensamento em uma máxima universalidade, tal que a totalidade do
conteúdo universal da Filosofia, como Filosofia do Espírito, alcance um nível
enciclopédico, pois não haveria processo de pensar dissociado do conteúdo
profundo manifesto por tal empreendimento.
Nota-se uma possível dicotomia entre essas
duas posições. Por um lado, para Kant, o saber imanente ao filosofar não se descolaria de seu fazer temporalmente lançado,
sendo, pois, um exercício do pensar, e não um conteúdo a ser apreendido. Já a
visão hegeliana, por sua vez, trata o conhecimento da Filosofia segundo uma
sistematicidade teórica que jamais poderia estar dissociada de sua prática,
visto que a história do Filosofar, como produto do pensar em sua máxima
universalidade, é o que dá as bases para que a ação prática da educação
filosófica possa acontecer na efetividade da vida escolar.
Diante destes dois paradigmas, consideramos que a
Filosofia, mais que nunca, deve ser radical em seu projeto de não aceitar um
único e absoluto método como o detentor do título da verdade acerca do
filosofar. Isto porque, tanto o ideal kantiano da autonomia da razão, quanto o
filosofar lançado ao nível enciclopédico do saber, tal qual foi proposto por
Hegel, contribuem com o ensino de Filosofia, cada qual segundo uma lógica
própria e peculiar. Ora, mais que dizer que o filosofar autônomo e o filosofar
direcionado pela história do pensar seriam contraditórios ou antagônicos,
talvez seja mais vantajoso pensarmos que estes dois posicionamentos poderiam manter
cada qual sua validade, sem esgotar ou aniquilar a validade do outro. Ademais,
caso seja aceito um único método como a “verdade absoluta” do filosofar, como
dar sequência ao mais próprio da Filosofia, que é atividade de abertura a novas
questões e novas respostas? Neste caso, consideramos pouco atraente que o
ensino de Filosofia seja definido seguindo os pressupostos destas ou outras
pedagogias, sejam elas fundamentadas em um possível âmbito criador na ordem dos
conceitos, ou de resistência supostamente fundamental a propor mudanças, os
quais definiriam o objeto de investigação de antemão, sem perceber que o
filosofar é a própria condição de possibilidade da liberdade do pensar. Com
outras palavras, os círculos viciosos de tais pedagogias edificantes poderiam
ser comparados com a jaula do macaco de Kafka, pois, como veremos adiante, se o
ensino de Filosofia possui o papel de renovar, e, desse modo, se toda
recolocação de velhas questões em disputa com as novas pelo professor de
Filosofia, deve ser pautado, ao menos em um primeiro momento, com um
desprendimento filosófico. Por que definir o significado do filosofar antes de
colocá-lo em prática na ordem imanente à sua natureza, isto é, em sala de aula?
Quem sabe, ensaiar uma boa resposta a esta questão esteja em pensarmos a
Filosofia como um começo que partiria de um ceticismo inicial, o qual permite o
questionamento democrático, e não dogmático na prática efetiva do ensino de
Filosofia?
Qual a identificação
entre a Filosofia e a Educação?
Comumente há identificações entre a
Filosofia e a Educação. Mas essa relação, que muitas vezes aparenta ser
indissolúvel, clara por si mesma, torna-se um ponto de discussão quando,
simplesmente, perguntamos: “Será possível falarmos de uma educação filosófica,
isto é, de um processo educativo de si mesmo por meio da Filosofia?” (GALLO,
2004, p. 207). Como bem explicita Gallo, este conceito de educação filosófica é
algo novo, que surge na história da Filosofia e que pretende ser extraído de um
modo específico de se colocar filosoficamente, sobretudo pensado a partir de
filósofos como Schopenhauer, Nietzsche, Foucault, Deleuze e Guattari, a saber:
que só há educação filosófica através do pensar por si mesmo (Schopenhauer),
ou pensando a partir da perspectiva de Nietzsche, formar-se homem é
tornar-se o que se é.
Sabemos que estes filósofos destoam entre si, pois cada
qual pensa de um modo próprio e específico a noção de formação filosófica.
Ademais, embora eles não se posicionassem diretamente como “filósofos da
educação”, ou como pensadores de “educações filosóficas”, ainda assim, em
vários momentos de suas obras, lampejam várias teses sobre a educação que nos
trazem enormes possibilidades de reflexão, sobretudo no sentido de tratar a
Filosofia de um modo "não manualesco" ou dogmático. Considerando este
ponto como nuclear em nossa abordagem do tema, nos permitiremos examiná-lo
segundo uma certa generalidade, de modo a nos voltar à questão da determinação
de uma educação filosófica que possibilite o pensar por si mesmo, ou o tornar-se
o que se é. Com outras palavras, é possível tornar-se o que se é pelo estudo
da Filosofia?
A formação humana
como projeto filosófico: Há identidade entre o filosofar e a formação do
sujeito autônomo?
A Filosofia nasce como um projeto do livre
pensar. Desde os filósofos gregos, a atividade reflexiva-crítica propõe certo
desprendimento, que geralmente rompe com as instâncias burocráticas
estabelecidas. Ora, sendo este o caso, como a Filosofia pode ocupar o papel de
ser parte curricular básica estabelecida e corroborada pelos tecnocratas do
estado, que comumente estão preocupados em justificar índices e números? Sem
desviarmos o olhar a esta importante questão, é fato que a aceitação da
disciplina de Filosofia, no ambiente escolar, é quase que unanimidade entre
professores e pesquisadores de Filosofia, nos dias de hoje, no Brasil. Posto
isso, após lutas e longo ostracismo, a disciplina está no currículo obrigatório
e deve cumprir requisitos e normas técnicas preestabelecidas. Diante desta nova
realidade, de nossa parte, pensamos que, mesmo havendo a possibilidade de a
Filosofia estar lançada no perigo da banalização e da burocratização paulatina
de seus conteúdos e questões, de todo modo concordamos com a importância
capital da inserção da Filosofia no espaço escolar. Porém, quando nos remetemos
à questão da determinação do papel da Filosofia para a formação humana na
escola, tudo indica que há duas questões propedêuticas que exigem especial
atenção. Em primeiro lugar, cabe, pois, saber: qual Filosofia ensinar? A
partir daí, temos que atentar ao método, isto é, qual o melhor método para
ensinar Filosofia?
O macaco de Kafka ou
a condição humana?
Sílvio Gallo traz um interessante texto de
Kafka para esta discussão, um conto intitulado: Um relatório para uma
academia, publicado na Alemanha, em 1920, em um volume com outros contos,
volume este intitulado “Um médico rural: pequenas narrativas”. Kafka
conta a história de um macaco, que, na busca de atingir uma situação de vida um
pouco melhor, decidiu tornar-se homem. Por meio da imitação, este macaco faria
tudo o que os homens faziam, tal como: beber aguardente, fumar, entre outras
coisas. Mas, essa nova situação alcançada pelo macaco, não o fez melhor que sua
antiga condição existencial, pelo contrário, ela lhe era de tal modo repugnante
que, quando possível, ele se permitia, por meio do sexo com uma macaquinha
também adestrada, esquecer-se de toda essa nova condição e gozar, mesmo que por
alguns instantes, de sua verdadeira natureza, ou seja, permitia ousar ser
aquilo que se é.
Dialogando com este conto de Kafka, sarcástico e
agressivo com as instituições sociais, Silvio Gallo procura pensar que talvez a
verdadeira situação da educação atual é exatamente a de uma deformação do
que somos, contrariando a proposta de uma educação filosófica que fosse
capaz de dar acesso à liberdade de pensamento. Voltando à metáfora do macaco,
tal qual nós homens, no seio da escola deformadora, o macaco se conduziu, se colocou como um ente indeterminado a disposição de uma
mudança total. Ao se entregar a outros totalmente alheios e estranhos
para gozar de algum privilégio, ele sacrificou sua própria condição. Resumindo,
ele se ‘prostituiu’. Ora, quem sabe essa não seja a atual condição da educação
posta nas escolas? Talvez a educação atual não seja uma forma, dizendo
metaforicamente, de uma prostituição em massa da própria humanidade, com vistas
a uma falsa ilusão de melhoria existencial?
Pensando nestas críticas e metáforas, qual o verdadeiro
ganho do macaco ao permitir que lhe adestrem? Em que consistiu sua mudança?
Valeu a pena todo o seu esforço em transformar sua própria natureza? Será que o
macaco não trocou de jaula? Ou, quem sabe, tornou sua situação mais penosa,
pois além da jaula ser outra que o seu antigo habitat natural, ele também não
teria deixado de ser ele mesmo, perdendo, de um só golpe, tudo o que ele
possuía?
Retomando estas reflexões e fazendo outras analogias com
a metáfora do macaco, Silvio Gallo apresenta algumas teses que insistem nesta
transgressão, nesta dissolução do indivíduo promovida pela educação
deformadora. Foucault é um dos teóricos que teria apontado na pedagogia moderna
o seu papel de submeter, em série, todo e qualquer indivíduo a um unívoco
conceito de disciplina, o que levaria, por conseguinte, a constituição de uma
“[...] poderosa máquina de produção de subjetividades em série” (GALLO, 2004,
p. 211). Deleuze e Guattari procuraram mostrar que a escola capitalista
transformou-se “[...] numa máquina de Estado, a seu serviço e seu instrumento” (GALLO,
2004, p. 211). O filósofo anarquista William Godwin problematizou a questão de
que os sistemas escolares, tais como geridos pelos “homens de estado”, teriam a
função de reforçar a manutenção do sistema instituído. Althusser, por sua vez,
denunciaria que a escola capitalista é um grande e horripilante aparelho
ideológico em defesa do Estado. Para Louis Althusser, um dos mais importantes e
inovadores intérpretes de Marx na França, em seu artigo, transformado em livro,
Ideologia e aparelhos ideológicos do
Estado (1970), é fundamental a visão de que toda educação pós-revolução
industrial é sempre ideológica. Finalizando este primeiro momento de seu
artigo, Gallo lembrou a famosa banda inglesa Pink Floyd que, ao apresentar
várias críticas à educação capitalista, a tratou como se fosse uma fábrica de
alienados em série, formados para exercer um único papel: viver como coisas
completamente destituídas de subjetividade. Assim, homens e crianças se
tornariam não mais que tijolos que formam, sustentam e elevam esse grande muro
chamado Estado.
Pensando em uma
possibilidade de saída da jaula
Pensar uma saída dessa lastimável situação é apontar para
um objetivo diferente para o papel da Filosofia e da educação. Melhor dizendo,
é apontar um caminho para colocar a Filosofia em seu devido lugar, isto é, como
capaz de formar espíritos livres, reflexivos e críticos. Segundo a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o papel da Filosofia é a formação
de cidadãos. Porém, aqui nos encontramos diante de um paradoxo, visto que
se a Filosofia e a educação filosófica manifestam uma proposta emancipadora,
a educação, em sua generalidade, tem por finalidade a corroboração do
sistema atual, e não a possibilidade de os alunos serem o que são, no
sentido, por exemplo, do que Nietzsche afirmava ser o papel do verdadeiro
homem, o de ser o escultor e o mestre de si mesmo.
Para
Sílvio Gallo, a concepção de uma pedagogia da cidadania é, por isso, o grande
muro a ser derrubado por uma Filosofia para a vida, com o papel de ser
eminentemente útil aos homens, mas esta utilidade é vista, pelo autor, nas
entrelinhas de sua exposição, como uma formação que tenha o papel de
questionar, e, em última instância, derrubar o sistema vigente.
Neste caso, a noção de educação filosófica é tratada por
Gallo a partir de três pontos norteadores, claramente embasados no pensamento
deleuziano, são eles: 1) Como pensamento crítico; 2) Resistência; 3) Criação e
recriação de conceitos. Embora consideremos os três elementos interessantes, o
tratamento dado por Gallo ao segundo ponto nos parece problemático. Isto porque
se os três elementos são fundamentais, de modo a serem trabalhados em sala de
aula e poderem contribuir à experiência educativa da Filosofia, a ideia de que
o ensino de Filosofia é um movimento de resistência e de ação parece destoar da
liberdade própria à Filosofia, a qual pode ou não manifestar-se enquanto um
agir político e ideológico mais ativo na sociedade. Há o âmbito teorético da
Filosofia, e este é tão fundamental quanto às Filosofias da praxis, por
exemplo, a de Karl Marx. Ora, a determinação da utilidade da Filosofia como um
agir filosófico, que não é distante da humanidade e da política, não precisa
estabelecer que o âmbito teorético rígido da Filosofia, como tomamos a liberdade
aqui de defini-lo, seja algo intocável ou que pertence a uma história que lhe é
própria.
Tendo em vista a noção de educação filosófica, para o
nosso posicionamento ser bem compreendido, podemos reformulá-lo da seguinte
maneira: Por uma questão de princípio, o pensar colocado em marcha não deve
estar, a priori, determinado por
qualquer ideologia filosófica. Isto porque se a atividade de filosofar estiver
definida de antemão, o resultado é que acabamos por derrubar o mecanismo
gerador pelo qual é possível a irrupção de várias discussões ideológicas
abordadas no ambiente escolar de forma livre. Ora, é a experiência imanente ao
ensino de Filosofia que propicia a abertura de horizontes para o pensar. É esta
atividade criadora, marcada pela diversidade, que mostra a riqueza do ensino de
Filosofia, a partir da abertura ao contraditório.
Assim
sendo, é por meio desta liberdade própria ao filosofar que o professor pode ter
como ideal a possibilidade de que o aluno, subjetivamente, desenvolva suas
próprias concepções filosóficas sem a necessidade de estar amparado
ideologicamente em uma posição pró ou contra o sistema. A educação filosófica
não deve estar amparada em um horizonte pré-reflexivo, dado que seria anterior
à atividade filosófica em sala de aula. Neste sentido, consideramos que o
filosofar não deve ser simplificado a funcionar como um arsenal de guerra, ou
de formação em massa, seja de “cidadãos conscientes” pró-sistema vigente, ou
seu oposto, isto é, a formação em massa de uma “classe revolucionária”, seja
ela anarquista, comunista, etc.
Segundo Gallo, a educação filosófica é uma Filosofia para
a vida, tendo o papel de ser útil e propor resistência ao sistema vigente.
Todavia, nos perguntamos se esta exigência de utilidade não seria uma imposição
de fora da natureza própria da Filosofia, pois o que efetivamente define esta
disciplina em prender-se a esses tipos de pressupostos teleológicos? E se o
ensino de Filosofia tiver a necessidade de ser útil, em que consistiria essa
utilidade e quem a determinaria? Seriam os burocratas do Estado? Seriam os que
somente concentram seus esforços em se opor à máquina estatal? Ou seriam as
exigências mercantilistas do capital? Ou uma teoria filosófica em detrimento de
outras?
A questão da utilidade da Filosofia precisa ser muito bem
discutida, pois, quem sabe, a Filosofia pode ser muito útil sem ser usada como
ação política ou ideológica. Por que o útil precisa ser determinado a ser
utilizado de forma independente de sua própria ação, que lhe é mais íntima, que
não é outra senão a atividade de pensar? Quem sabe a Filosofia tem
essencialmente uma utilidade, mas não tenha a finalidade de contribuir de forma
externa ao sujeito, e sim internamente, enquanto uma passagem que produz a
mudança de si mesmo e nada mais?
A Filosofia e seu
ensino: Qual o papel transformador imanente ao ensino de Filosofia?
Considerando esta breve incursão, realizada neste
capítulo, acerca da noção de educação filosófica, acreditamos que o papel
transformador da Filosofia não pode estar limitado em uma única e fechada
concepção, seja ela teórica ou prática. O verdadeiro ponto de convergência
entre teoria e prática é o homem, na medida em que ele é posto como o sujeito
que se constrói de inúmeras formas distintas, seja no âmbito prático, no âmbito
teórico, ou em ambos. Se um homem, ao menos conceitualmente dizendo, é livre e
possui vontade e querer, ele pode ser o escultor de si mesmo de inúmeras formas
distintas. Ora, porque reduzi-lo à necessidade de transformar o mundo como um
revolucionário profissional, quando ele pode, caso queira, transformar apenas a
si mesmo, que mal haveria nisso? Se, por um lado, a educação que defende os
interesses do Estado muitas vezes é opressora, por outro lado, uma pedagogia que
se centra tão somente em denunciar a opressão do estado em nome de uma mal
formulada educação contra a cidadania também não o seria? Será que essa
necessidade de afirmar que a Filosofia é prática e que o seu papel é
transformar toda a humanidade não seja hoje senão um grande entrave para o desenvolvimento
de uma verdadeira educação filosófica? Será que a atribuição desse compromisso,
que a Filosofia teria que transformar o mundo, não nos leva a um mal-entendido,
que prejudique a liberdade da investigação filosófica?
Na defesa de uma educação para o pensar por si mesmo,
enquanto uma continuidade da capacidade humana de ser aquilo que se é,
podemos nos voltar para a máxima de Sócrates, que propunha: “Conhece-te a ti
mesmo”. Dizia Sócrates que este caminho, o do
filosofar, pertencente a cada homem que procura a verdadeira Filosofia. A busca
pelo conhecimento de si mesmo é a construção da própria identidade pela
natureza da investigação filosófica. Enquanto for expressa uma subjetividade,
cada homem, em sua particularidade, pode ser capaz de se lançar a uma ruptura
radical com o mundo externo a si, sem ser “de-formado” para isso. Ora, podemos
nos voltar ao sentido do que Montaigne dizia: devemos nos atolar em nós
mesmos! A prática de uma educação filosófica está no desprendimento da
Filosofia em tornar-se uma educação para a cidadania, tal como o conceito de
cidadania é concebido pelo sistema, como aquele que, sem criticidade, segue
leis e defende os interesses da classe dominante, mas, por outro lado, não
pode reduzir-se ao seu contrário, no caso, tornar-se uma pedagogia de
oposição ao sistema, simplesmente denunciando as limitações e os problemas da
ordem vigente. Neste ponto em particular, toda e qualquer concepção de educação
filosófica deve estar entre estes dois opostos e para além deles, combatendo
seus extremos, buscando realmente promover, ao menos em um primeiro momento e
por uma questão de princípio, um desprendimento que é imanente à atividade
filosófica.
Convém que o ensino de Filosofia seja dinâmico,
multifacetado, com diversas posições sendo problematizadas dialeticamente por
professores e alunos. O que estamos procurando mostrar não é que a Filosofia
não tem aplicação na práxis, nas ideologias, na possibilidade de que os
homens se organizem e lutem por seus direitos, contra os mecanismos de
opressão. Mas, considerar que a possibilidade da práxis filosófica
decorre de um momento primeiro, que pode ser teorético ou não, havendo sim a
possibilidade de um desprendimento filosófico criador.
Fundamental é o princípio, talvez, nos diria Descartes.
Se o princípio da Filosofia está associado desde a Filosofia platônica à saída
da caverna, não há como sermos arrancados dela, mas temos que nos levantar e
caminhar solitários, ao menos nos primeiros passos e em um primeiro momento,
passo a passo na consolidação de nossa própria liberdade. Há que haver o
conflito; sem contraditórios, não há Filosofia. O princípio do ensino da
Filosofia é a abertura para a multiplicidade, e não a instauração de um
posicionamento ideológico pré-reflexivo. O conflito é um mecanismo gerador, já
dizia o filósofo pré-socrático Heráclito. O famoso filósofo de Éfeso acreditava
que tudo era governado pelo combate. Tanto a natureza (Physis, para os gregos), quanto as coisas
humanas, só são o que são pela contínua discordância harmoniosa que
governa todas as coisas. Temos, em alguns aforismos de Heráclito, uma amostra
do seu interessante pensamento: “O Sol não apenas, como Heráclito diz, é
novo cada dia, mas sempre novo, continuamente” (HERÁCLITO, Aforismo 6,
2000, p. 88); “Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não somos”
(HERÁCLITO, Aforismo 49a, 2000, p. 92); “O combate é de todas as coisas pai, de
todas rei, e uns ele revelou deuses, outros homens;
de uns fez escravos, de outros livres” (HERÁCLITO, Aforismo 53, 2000, p.
93). Estes fragmentos nos mostram a importância da divergência, que, tanto nas
coisas humanas como no plano da natureza, acontece em contínua dialética, sempre
se renovando. Ora, como sem o conflito não há vida, com a escola não poderia
ser diferente. Assim sendo, cabe ao papel do ensino de Filosofia a iniciativa
de ampliar os horizontes investigativos, em vez de determiná-los de modo a priori.
Sobre o papel de um
ceticismo pedagógico na prática da educação filosófica
Tendo em vista o exposto, podemos pensar a importância do
embate entre as várias perspectivas contraditórias, como mecanismo gerador do âmbito escolar. Devemos lembrar que há, no seio
da própria escola, no mínimo, uma dicotomia que não pode ser desconsiderada. De
um lado, há a ação do sujeito em sua dimensão estrutural, na medida em que ele
pertencente aos grupos sociais, estas estruturas o estagnam e o aprisionam, tal
que chegam a determinar seu comportamento e seu saber. Em relação a este
âmbito, estamos de acordo com Althusser e toda sua análise do papel da educação
alienadora. Porém, diferindo de sua posição marxista, por outro lado, ainda
consideramos que há o âmbito em que a escola é feita em suas nuances
contraditórias, por alunos, professores, funcionários, comunidade, em todas as suas
complexas inter-relações, em que há variadas formas de ações, ideias e
tentativas destes membros da escola em resistirem e lutarem contra o âmbito
estrutural burocrático ao qual a mesma pertence.
Queremos insistir sobre esse ponto: não somos contra o movimento
de resistência. Apenas acreditamos ser fundamental colocá-lo em seu devido
lugar. No caso, este movimento de resistência não é dado a priori, mas é manifesto na própria vivência escolar. Assim, o
filosofar dado na efetividade da vida escolar não pode ser definido de antemão,
tampouco ensinado como um curso de Filosofia marxista ou algo do gênero. Neste
âmbito da escola, as ações e construções reais são repletas de tramas, de
situações, de estratégias individuais e grupais que transgridem as questões
referentes ao sistema e forçam nossa atenção a pensar para além das estruturas
sociais. Sendo assim, a escola ganha vida, é formada assistematicamente em
carne e osso, ela se modifica continuamente, ela é vivida. Justamente por
este fato, uma educação filosófica não pode reduzir seus conteúdos e suas
possibilidades investigativas a serem engrenagens, sejam estas postas a serviço
do sistema ou como de oposição a ele. As pedagogias filosóficas são
instrumentos fundamentais, porém, elas não devem aprisionar a criatividade
filosófica em um único e absoluto método. Ensinar e aprender Filosofia não
deveria ser doutrinação ideológica, seja a favor de uma religião, a favor de um
determinado regime político, seja contra uma religião ou contra um determinado
regime político, ou mesmo a favor de uma teoria filosófica, ou de outra, etc.
Aqui estamos propondo, de forma livre e assistemática, a
valorização de um ceticismo pedagógico-filosófico como uma estratégia
fundamental na postura do professor de Filosofia. Não que seja possível um
desprendimento absoluto de nossos prejuízos, opiniões e ideologias, visto que
estamos no mundo e partilhamos certas ideologias, preferências filosóficas,
etc. No entanto, ainda que em certo nível possamos tomar o círculo vicioso da
ideologização do saber como algo dado, ao qual estamos lançados a repetir e
retificar, de todo modo, o professor de Filosofia pode sim se espelhar no
procedimento cético para abordar suas aulas com o máximo possível de
neutralidade, ainda que ser neutro em sentido absoluto, talvez, seja
impossível. Ora, os céticos defendem que é possível não dogmatizar em sentido
radical. Partindo desta visada, ensaiamos aqui
pensar uma aproximação entre o que defendem os céticos pirrônicos e a prática
da educação filosófica como mecanismo emancipador nos dias de hoje.
***
De fato, não acreditamos que haja uma neutralidade
absoluta entre alunos e professores de Filosofia, e isto não está em questão.
Sempre existirão preferências ideológicas entre professores e alunos, pois eles
são sujeitos históricos, que vivem historicamente em um mundo com inúmeras
ideologias lutando dialeticamente entre si. Mas, a proposta do ensino de
Filosofia, enquanto um ideal a ser perseguido, é sim a busca pela apreciação do
diverso pelos alunos. Neste sentido, quem sabe o papel do ensino da Filosofia,
antes de ser uma prática que represente uma ideologia, seja a construção
subjetiva de si mesmo? Não que a prática, enquanto manifestação no mundo de
determinado modo de compreendê-lo, não tenha sua importância, sem dúvida ela
tem; entretanto, ela deve ser construída, com novas ideias e possibilidades,
pelos alunos e professores de Filosofia, em suas mais diversas variações. A
Filosofia pode ser útil, mas não deve ter sua utilidade
pré-determinada por uma ideologia de fora da dimensão essencial do filosofar.
Que o ensino de Filosofia seja criativo e tenha uma tarefa menos audaciosa, não
exigindo que alunos e professores sejam mais esses defensores ou opositores do
sistema. É necessário que alunos e professores possam viver a Filosofia sem
estes rótulos político-pedagógicos. Sendo assim, o ensino de Filosofia, em toda
a sua grandiosidade e/ou pequenez, está em uma posição capaz de promover que o
aluno busque mudar antes a si mesmo que mudar o mundo, pois isso é algo dado à
natureza humana e imediatamente acessível a todos. Neste sentido, Shopenhauer
apresenta a importância do desenvolvimento do pensamento próprio:
A mais rica biblioteca, quando desorganizada, não é tão
proveitosa quando uma bastante modesta, mas bem ordenada. Da mesma maneira, uma
grande quantidade e conhecimentos, quando não foi elaborada por um pensamento
próprio, tem muito menos valor do que uma quantidade bem mais limitada, que, no
entanto, foi devidamente assimilada. Pois é apenas por meio da combinação ampla
do que se sabe, por meio da comparação de cada verdade com todas as outras, que
uma pessoa se apropria de seu próprio saber e o domina. Só é possível pensar
com profundidade sobre o que se sabe, por isso se deve aprender algo; mas também
só se sabe aquilo sobre o que se pensou com profundidade (SCHOPENHAUER, § 1,
2007, p. 39).
Pensar por si mesmo, enquanto exercício de uma
educação filosófica, é experienciar as ideias filosóficas por si mesmo,
subjetivamente, de forma livre e indeterminada, tal como é característico do
sentido originário da palavra Filosofia. Historicamente, esta palavra é
atribuída a Pitágoras de Samos, filósofo grego, que teria definido o filósofo
como um amigo do saber. Uma educação filosófica só está em consonância com o
sentido originário da Filosofia, se for desprendida ideologicamente. A amizade
ou devoção, na busca pela sabedoria, possui duas características fundamentais
que se entrecruzam. Em primeiro lugar, há uma entrega de quem possui amizade.
Ela é um desprendimento de si mesmo no apreço por algo que é externo. Em
segundo lugar, na realização desse desprendimento, dessa busca pela sabedoria,
nos abandonamos a nós mesmos e continuamente nos tornamos outro que aquilo que
éramos. Esse é um caminho sem volta e sem fim. Somos dominados por este
desfacelamento de nós mesmos, promovido pela pesquisa filosófica. Por outro
lado, o filosofar é a expressão mais pura e livre da vontade que possuímos em
nos descobrirmos a nós mesmos. Como pensava Levinas, nós não estamos no
paraíso mas nós estamos no mundo, e nesta condição imanente a todos, cabe a
cada um questionar-se, como propõe Descartes no Discurso do Método e nas
Meditações: o que é essa coisa que nós mesmos somos? Também é nesta
aparente pequena proposta, mas carregada de sentido,
que o ensino de Filosofia proporcionaria aos alunos que usufruam a
possibilidade de pensarem o seu próprio pensar, tal como
Aristóteles acreditava ser o papel fundamental da Filosofia.
[1] Apresentamos, no I Congresso Latino-americano de Filosofia
da Educação (www.alfe-Filosofiadelaeducacion.org.2011), uma primeira versão deste
texto em uma comunicação, sob o título: “O macaco de Kafka e a educação
filosófica: é possível sair da jaula?”. Este novo texto amplia a discussão e
propõe uma reformulação em nossa abordagem acerca da noção de educação
filosófica.
[2] Cf. Crítica da Razão Pura, 1983.
Na versão da coleção Os Pensadores,
o tema é tratado entre as páginas 407 a 409. Por sua vez, na paginação
kantiana, a questão do ensino de Filosofia está exposta entre as páginas B-864
a B-869.
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