Jogos são para apaixonados, principalmente como instrumentos de prazer e diversão.
Já a ciência é para aqueles que trabalham arduamente e tendem à sistematização do conhecimento.
O xadrez e a filosofia são duas áreas do saber que se relacionam: a filosofia é abrangente e o xadrez manifesta filosofias!
Isto porque a “mãe Filosofia” propõe diversos olhares acerca de um mesmo objeto investigado, de modo que o “compreender” algo sempre remete a um horizonte reflexivo diversificado. Cabe lembrar que na história da Filosofia ocidental diversos filósofos manifestaram paixão pelo xadrez, ou mesmo propuseram pensá-lo filosoficamente.
O que é o caso, por exemplo, de Wittgenstein (1889-1951) e Deleuze (1925-1995), entre outros. Também podemos considerar, em certo sentido, que gênios do jogo e da teoria do xadrez podem ser considerados filósofos, na medida em que ao interpretar o xadrez segundo novos paradigmas, contribuíram em revolucionar a compreensão geral acerca desta fascinante ciência.
Outro ponto de convergência são as duras exigências para progredir tecnicamente. Assim como acontece com a Filosofia, sobretudo nos dias atuais, não basta possuir talento mediano para chegar ao sucesso no xadrez. Para alcançar bons resultados nestas áreas, bem ou mal, é necessário estudar muito! Porém, estudar remete a saber estudar, saber planejar o tempo e o material utilizado, saber selecionar objetivos a serem alcançados a partir de etapas preestabelecidas.
Concentração e rigor no cumprimento de um projeto de trabalho é essencial. Podemos lembrar o que afirma René Descartes (1596-1650) no Discurso do Método: “pois é insuficiente ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo bem” (DESCARTES, 2010, p. 63).
Considerando este espírito do método como horizonte pedagógico, milhares de livros de xadrez foram escritos sobre estratégias de aprendizagem, sobretudo para que enxadristas de níveis iniciante e intermediário alcançassem a maestria. Alguns livros chegam a anunciar fórmulas mágicas, como se houvesse receitas de bolo para se tornar um Grande Mestre. Por outro lado, na vida real, para aqueles que não conquistaram nenhuma titulação, muitas vezes alcançar a maestria parece ser um enigma ou até mesmo algo místico e irrealizável.
Talvez o momento da vida de um enxadrista em que ele se dedica com todas as suas forças a alcançar considerável progresso técnico e prático seja o mais difícil de todos. Isto por que após alcançar o título de Grande Mestre, o jogador pode cair em uma fase muito ruim, baixar seu Rating e não conseguir mais vencer jogadores fortes. Ainda assim, ele jamais deixará de ter o título de Grande Mestre e ser reconhecido como tal!!
E quanto ao jogador de clube, que sempre está a um passo da maestria mas não consegue subir definitivamente de nível, como culpá-lo por se sentir fracassado?
Caso o xadrez seja pensado segundo uma perspectiva positivista, alcançar a maestria é o centro da questão e um requisito fundamental. Por outro lado, ao desmistificarmos esta interpretação equivocada e valorizarmos as contribuições pedagógicas e as ações afirmativas que o xadrez desencadeia no âmbito da inclusão social, ser um mestre não é o resultado ou o fundamento da prática enxadrística.
O xadrez de alto nível jogado por mestres é um aprofundamento do xadrez jogado como hobby por milhares de pessoas no mundo inteiro. Estes dois mundos não existem, não há um dualismo imanente ao xadrez. Dissociar o xadrez como se houvesse um que seria referente à vida comum e um outro praticado apenas por mestres é criar antagonismos inexistentes e desnecessários.
Diante da “eterna pergunta que fazem todos os jogadores de xadrez: Como posso melhorar meu jogo?” (YERMOLINSKY, 2002), muitos ficam frustrados com o xadrez e param de jogar, seja por não progredir ou mesmo por baixar a força do seu jogo, não conseguindo mais retomar um nível já alcançado. Muito se tem discutido se o jogo de xadrez é uma arte, um jogo ou uma ciência.
Xadrez é a diversidade na unidade, e a paixão que move milhares de aficionados esbarra na dificuldade de compreender o jogo como uma ciência, assim como é difícil ao iniciante entender as façanhas dos gênios que ultrapassam as regras normais de aprendizagem. Daí, provém, naturalmente, ilusões e frustrações.
De nossa parte consideramos fundamental desmistificar o chavão de tratar o xadrez como um esporte automaticamente saudável. O xadrez pode ser saudável ou não. Uma boa analogia é a palavra “droga”, ou o “fármaco” para os gregos. Por mais que a frase a seguir pareça de autoajuda, não deixa de ser verdade que um mesmo objeto pode ser remédio ou veneno, tudo depende do seu uso. Não traz vantagens aos praticantes do jogo considerá-lo intocável, puro e perfeito, de forma que só traria benefícios às mentes e às vidas das pessoas. Ao contrário, cada um é completamente responsável em desenvolver o equilíbrio interior para que o xadrez seja uma atividade saudável. Isto porque xadrez é muito viciante.
É de conhecimento geral que alguns enxadristas chegam a ter problemas psicológicos, e, caso não alcancem a completa insanidade, ao menos vivem de forma bem estranha, considerando os padrões de comportamento socialmente aceitos. O que queremos enfatizar é que o xadrez não está desenraizado de nossa natureza, a qual pode tender ao vício ou a virtude, à doença ou à saúde. Como dizia o Filósofo Epicuro em um texto famoso, intitulado Carta a Meneceu ou Carta sobre a Felicidade, o objetivo da vida feliz é o prazer! No entanto, o prazer deve ser maximizado com base no cálculo da utilidade e do dano, pois muitas dores são preferíveis aos prazeres quando um prazer maior advém por termos suportado a dor por longo tempo.
A inquietação constante é fonte de dor, enquanto que o verdadeiro prazer é alcançado pela tranquilidade do espírito. Assim, nos remetendo a estas breves observações acerca do pensamento de Epicuro, talvez, tão importante quanto jogar bem xadrez seria o refletir sobre a nossa relação pessoal com este jogo. Seja considerando o bem que pode nos trazer, ou mesmo o mal que já pode estar nos fazendo.
Jogar xadrez deve ser uma atividade saudável! No entanto, não há como negar que entre as mais torturantes sensações que um enxadrista poderá vivenciar estão aquelas das derrotas avassaladoras. Sobretudo quando deixamos escapar uma grande oportunidade de conquistar uma boa titulação, ou um pódio em uma competição importante. Em relação a este tema, todo manual de xadrez que tenha um mínimo de qualidade assinala a importância de utilizar a derrota como uma estratégia de aperfeiçoamento. Analisar as próprias partidas, algo tão importante na formação de um bom enxadrista, nada mais é que retornar ao legado Socrático: “Conhece-te a ti mesmo!”
Etimologicamente dizendo, a palavra método significa um “caminho a ser seguido”. Segundo o modo profilático de tratar o xadrez, quanto mais exato e isento de subjetividade o método, mais sucesso o jogador é capaz de alcançar. Seguindo por metáforas, notemos que Sócrates propõe a liberdade do pensar para o conhecimento de si mesmo, ressaltando a individualidade humana. Para o filósofo grego o verdadeiro método não é aquele que arranca o indivíduo de sua natureza, mas sim o que torna os indivíduos capazes de manifestarem a espontaneidade de suas individualidades.
Para Sócrates, por exemplo, a filosofia e os professores jamais poderiam transmitir a verdade, mas no máximo ajudar os indivíduos a descobri-la sozinhos. De um modo geral, o método socrático é conhecido por três elementos que se complementam, a saber: a ironia, a dialética e a maiêutica.
A ironia socrática se valia de perguntas feitas ao interlocutor, no sentido de oportunamente estimular o abandono dos prejuízos e a descoberta (parto) da verdade interior. Partindo de uma curiosa postura de afirmar saber que nada sabia (Só sei que nada sei!), Sócrates desmascarava a ignorância dos falsos sábios. Para Sócrates a dialética é um instrumento da busca pela verdade, pela qual seria possível ultrapassar, a partir da contraposição de teses, as aparências. Por fim, a maiêutica, literalmente, é a arte da parteira, a qual Sócrates se espelhava, limitando-se a perguntar, de forma que o interlocutor e não o professor fosse o detentor da verdade.
A maior dificuldade em ensinar e aprender a jogar xadrez está na condenação imanente a máxima socrática.
Na introdução do famoso livro de Alex Yermolinsky, traduzido ao espanhol como El Camino hace el progresso em ajedrez (CF. YERMOLINSKY, 2002), o grande mestre relata sua passagem pela forte escola soviética e toda a frustração de anos se dedicando ao xadrez sem conseguir progressos significativos. O método criado por Yermolinsky para seu treinamento autodidata foi inspirado em conhecidos conselhos de dois grandes ex-campões mundiais de xadrez: Alekhine e Botvínik. Este método não é outro segredo que estudar as próprias partidas e comentá-las exaustivamente em análises caseiras! (CF. YERMOLINSKY, 2002).
Podemos aprender com os professores e livros de xadrez a teoria clássica, os princípios e as regras gerais que norteiam o jogo segundo uma perspectiva profilática. É possível ser muito bem iniciado no movimento das peças, tática, aberturas, meio-jogo, finais, etc. Porém, sem uma proposta de investigação pessoal, conforme aquela relatada por Yermolinsky, por exemplo, toda ajuda exterior tende a tornar-se estéril.
Ademais, o xadrez atual ultrapassou a “clareza e distinção” dos métodos infalíveis e padronizados para a busca de pretensas verdades absolutas. Nas últimas décadas importantes teóricos do xadrez como, por exemplo, John Num, John Watson, Mihai Suba, entre outros, assinalam o limite para o uso de métodos estáticos como ferramentas pedagógicas.
É este caminho límpido e fácil até a maestria que muitos livros de xadrez propõem conduzir o estudioso atento e rigoroso. Grande ilusão! É o que muito apropriadamente afirma Jonh Watson, parafraseando Suba:
A maioria dos livros sobre teoria moderna consideram que melhorar nosso jogo mediante o estudo da estratégia, implica alcançar um nível superior ao de um jogador que não há tido este estudo. Isso pode ser parcialmente certo, mas o advertiria que o dogma introduzido pode ter um efeito em detrimento de sua criatividade. Trate de ler estes livros com olho crítico, como se não acreditasse uma palavra do que dizem. Memorize variantes de aberturas, técnicas no final, combinações, ideias, inclusive partidas completas, caso possa, mas não regras e dogmas (WATSON, 2002, p. 293).
Não intenciono refutar de modo tão inapropriado a teoria clássica do xadrez. Tampouco os autores citados acima teriam tal pretensão. Mas como praticante do jogo, professor de xadrez e de filosofia, há um bom tempo venho percebendo que estudos densos e sistemáticos muitas vezes possuem menos eficácia que o exercício e absorção pessoal de novas ideias. Seja as que tomemos de empréstimo acompanhando os jogos dos grandes mestres, ou mesmo nas análises caseiras que devemos fazer em nossas anotações. A partir destes estudos já realizados, aí sim podemos complementá-los ao contrapor nossas ideias às sugestões que um bom engine nos indica.
É claro que aqueles que possuem condições financeiras podem sim ter o auxílio de um professor ou de um mestre. Todavia, muitos de nós, como foi o meu caso, aprendem a jogar de forma autodidata. Por ser um jogo que incita o autodidatismo, o xadrez possui uma característica interessante de inclusão social e superação de classes. Há uma frase que diz: todo grande profissional começa com um bom professor! Sim, o professor é uma nobre profissão, talvez a mais importante. No entanto, esta é uma máxima que não pode ser tomada como regra no xadrez. É incomensurável a importância do professor de xadrez, mas acredito que o nosso jogo possui um caráter peculiar de ser, em grande parte, autodidata. Com a internet e os engines, os livros e os métodos de treinamento deixam de ser o centro da investigação enxadrística e dividem sua importância com estas novas ferramentas e tecnologias.
Quando usamos a palavra “vocação” para nos referirmos ao xadrez e a filosofia, intencionamos enfatizar este caráter autodidata destas duas incríveis áreas do conhecimento, nas quais é possível ser o mestre de si mesmo. No xadrez, hoje é fundamental estudar e respeitar a tradição, passar pelos métodos de ensino e progredir. No entanto, podendo compará-la ao espírito socrático, considero apropriadas as considerações de Watson e Suba no sentido de mostrar a importância do olhar crítico em relação aos paradigmas dos métodos enxadrísticos.
O verdadeiro mestre não é aquele vence todos os seus adversários custe o que custar, seja chutando adversários por baixo da mesa, ou usando indevidamente celulares com programas de xadrez nos banheiros, mas é aquele homem comum que está satisfeito e feliz com seu pequeno xadrez do dia a dia.
Referências Bibliográficas
DESCARTES, René. Obras Escolhidas. (Org.). J. Guinsburg, Roberto Romano e Newton Cunha. Tradução: J. Guinsburg, Bento Prado Jr., et al. São Paulo: Perspectiva, 2010. (Textos; 24).
EPICURO. Antologia de Textos. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)
_________. Carta a Meneceu. Tradução: Álvaro Lorencini e Enzo del Carratone. São Paulo: UNESP, 1997.
NUNN, John. Secrets of Pratical Chess. London: Gambit, 1998.
PLATÃO. A República. 2. ed. Tradução: Maria Helena da Rocha
Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993.
_____. O Banquete. Tradução: Jorge Paleikat e João Cruz Costa.
São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Coleção Os Pensadores).
SUBA, Mihai. Dynamic Chess Strategy. Pergamon, 1991.
WATSON, John. Los Secretos de la Estrategia moderna em ajedrez: Avances desde Ninzowitsch. Tradução: Juan Sebastian Morgado e Roberto Gabriel Alvez. London: Gambit, 2002.
YERMOLINSKY, Alex. El Camino hace el progresso em ajedrez. Tradução: Juan Sebastian Morgado e Roberto Gabriel Alvez. London: Gambit, 2002.
Observação: esta matéria é uma revisão completa de um artigo que publiquei na edição 8 da Revista de Xadrez Meio Jogo – sob a coordenação do amigo Rogério Santos - Árbitro da Fide.
Conheçam a Revista:
http://revistameiojogo.com.br
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Esta matéria não deve ser utilizada comercialmente, e tens fins puramente pedagógicos.
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