quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Introdução à Filosofia: a série Sense 8 e a experiência de uma intersubjetividade radical




A série do Netflix Sense 8 é daquelas coisas que amamos ou odiamos

Eu estou gostando!

Meio filosófica e maluca, esta obra americana de ficção científica, é comumente criticada por explorar demasiado a questão LGBT

Discordo absolutamente. Acredito que a série trata do tema "en passant", na verdade ela trata de uma questão filosófica fundamental:  

a experiência da intersubjetividade humana

Quando dizemos subjetividade, remetemos à uma certa noção de sujeito, mas qual?

Para a filosofia moderna, sobretudo se tivermos Descartes como horizonte investigativo, o eu (ego), é o sujeito das ideias ou representações, ele é um suporte que, ao ter consciência, organiza e dá sentido a todas estas ideias que nele estão

A mente ou alma, supõe a existência desse "eu" (ego em latim), o qual é o sujeito de todas estas ideias

Cada mente ou alma, é o sujeito de suas próprias ideias

Como sujeito, o eu é o suporte, ele é uma unidade que permite que as coisas sejam pensadas de forma organizada e com sentido

Para Descartes, além de Deus, só o sujeito humano pensa, pois os animais, por não terem alma, são equiparados à máquinas

É claro que aqueles que defendem o direito dos animais não gostam muito de Descartes....rsrs

Em relação a este ponto, com razão!

De todo modo, grosso modo, esta é a visão de René Descartes em sua famosa tese do cogito:

a existência do sujeito pensante 
- res cogitans (coisa pensante), 
que se descobre a partir da famosa proposição 

"penso logo existo"

A visão de René Descartes trata 
desta noção de sujeito ou subjetividade de modo a explicitar a 
universalidade de um 
sujeito pensante, 
mas parece não 
tratar suficientemente da noção de intersubjetividade
ao menos em sua obra referência, as Meditações de Filosofia Primeira

O outro, (o outro sujeito, ou outros sujeitos) parece, pois, um problema, na medida em que o eu, ao refletir sobre si mesmo, sobre suas ideias e representações, 
ele só tem acesso a este outro (a esta outra pessoa) de forma indireta

Os pensamentos de outrem, 
seu verdadeiro mundo psíquico,
sua verdadeira personalidade,
é sempre uma caixa preta fechada para nós, visto que só o acessamos superficialmente

A psicanálise mostra isso com muita propriedade...

Podemos ver nos casos dos seriais killers, 
os quais, muitas vezes, 
têm uma vida normal, e mesmo chegam a ser pessoas inteligentes, 
embora utilizem tais inteligências para o mal

Em relação aos seriais Killers, segue a referência de duas outras séries incríveis do Netflix que eu e minha esposa nos internamos assistindo:
Marcella e The Killing

Nos voltando à série Sense 8
ela apresenta uma proposta radical 
que possibilita pensarmos uma experiência humana compartilhada diretamente


Nela temos oito pessoas,
repartidas pelo mundo, que vivem
sob uma conectividade sensível e intelectual, 
de forma que partilham 
sensações e ideias.

Imagine o caso de estar sendo perseguido

Nesta situação, você, 
ao mesmo tempo, 
sentiria suas experiências misturadas 
com as de uma outra pessoa que 
também está neste momento experienciando suas impressões!

Um outro exemplo interessante é a experiência da alegria: 
imagina compartilhar 
diretamente com alguém, naquele exato instante da euforia, da adrenalina, 
de tudo aquilo que você está sentindo!


Ocorre que nesta experiência compartilhada, o outro pode ajudar ou atrapalhar,
o que ocorre em diversas cenas da série...rsrs


Mas é possível estarmos interconectados
de forma tão radical?


Pensemos a questão do nosso acesso ao mundo a partir do empirismo do filósofo escocês David Hume


O empirismo de David Hume considerava que:


1) todas as ideias têm como origem a experiência humana; 


2) que o poder criador da mente está restrito necessariamente a ter como origem os limites da experiência


A experiência humana acontece
de forma temporal, e cada um de
nós está limitado a conhecer de forma imperfeita e ao nível da máxima probabilidade

Isto significa que jamais temos um conhecimento perfeito, inclusive, 
em um famoso exemplo citado por 
Hume:

O que nos garante que o sol nascerá amanhã?

Diz o filósofo, nada!

Embora o sol sempre tenha nascido, não podemos ter certeza que ele nascerá!


É por limitar o que podemos conhecer, criticando o idealismo, que o filósofo Hume é considerado um cético e empirista


Para o empirismo, a fonte primária do conhecimento é a experiência - de forma que todo o nosso conhecimento têm como origem a experiência


Cada sujeito, em seu contato 
com suas sensações internas e 
com as sensações provindas de 
seu contato com as coisas, 
vai construindo seu mundo psíquico e sensível


Diferente do idealismo, por exemplo, 
o de René Descartes, 
o empirismo de Hume exclui
as ideias inatas
(ideias que estariam dadas e não precisariam da experiência para existirem)


Para descobrir se uma ideia corresponde a algo de real, 
ou se ela seria uma mera ficção da mente,
é fundamental perguntar: 


de que impressão (empírica) provém esta ideia?

Neste caso, em sua obra Investigação acerca do Entendimento Humano
o filósofo promove uma investigação 
sobre a origem das ideias, partindo de três teses fundamentais: 


1) Tudo o que temos acesso são a percepções e que estas se dividem por graus de vivacidade entre impressões e ideias; 


2) a mente humana pode conceber tudo o que não implica contradição, mas são estreitos os limites do poder criador da mente, de modo que o seu poder se reduz a “combinar, transpor, aumentar e diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência”. 


Assim, qualquer material que 
pertença ao pensamento deriva necessariamente de sua percepção 
interna e externa 
(tese do empirismo que delimita os poderes criadores da mente humana a partirem sempre dos dados da experiência); 


3) “todas as nossas ideias ou percepções mais fracas são cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas”.


Para o empirismo de Hume:

 a) Pensamentos ou Ideias: são menos fortes ou vivazes

b) Impressões: São todas as nossas percepções mais vivazes


O limite do pensamento remete ao seu poder: 


Ele pode conceber tudo o que não implica contradição absoluta

Por exemplo, a mente humana é incapaz de pensar ao mesmo tempo um círculo quadrado

Para o filósofo podemos conceber 
o que nunca foi visto ou ouvido, 
como é o caso de alguém que 
nunca foi a Madri, mas pode falar 
tudo sobre Madri, como se tivesse
 vivido naquela cidade sua vida inteira. 

Neste sentido, 
o poder do pensamento é incrível, 
mas está limitado a não poder 
abarcar o que implica uma contradição absoluta

Mas não haveria, na série Sense 8, esta contradição, de dois sujeitos sentirem coisas distintas ao mesmo tempo e compartilharem tais sensações??

Sim! Eis o ponto!
A série problematiza algo fundamental...

Descartes não aceitaria que um "eu" se misturasse a outros "eus" conforme a série supõe, assim como Hume não aceita essa contradição de pensar e sentir coisas distintas, ao mesmo tempo, por sujeitos distintos!

Mas continuemos em Hume e depois retornaremos à série...

Quanto às ideias, e, 
em especial, às abstratas, 
todas as nossas ideias são naturalmente fracas e obscuras, 
visto que a mente somente
as retém por um tenuíssimo fio

Assim, elas sempre estão sujeitas a serem confundidas umas com as outras


Ocorre que muitas vezes 
utilizamos um termo qualquer, 
mesmo sem significado claro, 
e nos inclinamos a supor que 
a esse termo corresponde uma ideia determinada


Se as ideias são naturalmente
 fracas e obscuras, por outro lado, 
afirma Hume que nossas impressões, 
ou sensações, tanto interiores quanto exteriores, são fortes e vívidas,
 e seus limites são os mais nítidos possíveis, o que nos ajuda a não errarmos a seu respeito


Notamos, conforme exposto acima,
 que o empirismo de Hume defende que a impressão é superior às ideias, 
e esta estratégia visa refutar o racionalismo, pois o último considera 
que as ideias possuem estatuto privilegiado em relação às sensações

Quanto a tais temas, o interessante é que esta obra de ficção (Sense 8)
propõe que extrapolemos 
com a ideia de um sujeito
 organizador de percepções e ideias,
 e supõe a existência de sujeitos sencientes que compartilhar mundo, 
o que é muito interessante e incrível, e contraria a tese de David Hume, o que é filosoficamente enriquecedor...



Referências Bibliográficas:

Bibliografia Primária:

HUME, David. An Enquiry Concerning Human Undestanding. New York: OXFORD University Press, 2007.
________ . Investigação sobre o Entendimento Humano. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores)
________ . Tratado da Natureza Humana. Tradução: Débora Danowski. São Paulo: Editora da Unesp, 2000.

Bibliografia Secundária:

AYER, Alfred Jules. Hume. Tradução: Maria Luísa Pinheiro. Lisboa: Edições Dom Quixote, 1981.
COVENTRY, Angela M. Compreender Hume. Tradução: Hélio Magri Filho. Petrópolis: Vozes, 2009.
Ferraz, Marília Côrtes. Liberdade e imputabilidade moral em Hume. Dissertação de Metrado. Unicamp: Campinas,   SP,   2006.
HIRSCHBERGER, Johannes. Abrégé d’ Histoire de la Philosophie Occidentale. Adaptação francesa: Philibert Secretan. Fribourg Suisse: Editions Universitaires Fribourg Suisse, 1990.
KEMP-SMITH, N. The Philosophy of David Hume. London: MacMillan, 1966.
MONTEIRO, João Paulo. Hume e a Epistemologia. São Paulo: Discurso Editorial, 2009.
NOXON, James. La Evolucion de la Filosofia de Hume. Tradução: Carlos Solís.  Madrid: Alianza Editorial, 1973.
SMITH, Plínio Junqueira. O Ceticismo de Hume. São Paulo: Loyola, 1995.

A imagem utilizada é pública: www.pixabay.com









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