segunda-feira, 29 de maio de 2017

Introdução ao pensamento filosófico: O homem é o lobo do homem - Egoísmo e sociabilidade em T. Hobbes




Thomas Hobbes (1588-1679) considerava que os homens são naturalmente egoístas.



Os seres humanos não são seres gregários por natureza, tal como concebia Aristóteles. 



Ao contrário, em sua obra Leviatã (1651), diz Hobbes que sentimos extremo desprazer em estarmos em companhia uns dos outros e que, na verdade, preferiríamos viver isolados.



Nesta estranha relação de estarmos unidos em grupos, quando não queremos estar. Cada um fica esperando ser considerando digno de respeito e consideração, e permanece tão preso a esperar lisonjas e glórias que surge o perigo de que todos se destruam uns aos outros. 


Dentro desta situação apresentada a discórdia humana emerge de três causas fundamentais:


1) a competição;


2) a desconfiança;


3) a glória.


Na primeira, um ataca o outro com vistas ao lucro. Na segunda, por querer ter segurança. Na terceira, por reputação.


É dentro deste horizonte de compreensão do humano, “ser egoísta” não se refere a um ato voluntário de irracionalidade ou maldade. Mas, ao contrário, o fato de “ser egoísta” caracteriza essa necessidade intrínseca de uma natureza que lutar incessantemente por adquirir tudo o que lhe apraz, sendo esta característica, em várias circunstâncias, uma qualidade de suma importância à manutenção da vida.


Cada homem sempre quer se expandir, adquirindo mais e mais força, mais poder. Disto resulta que no “estado de natureza” (EN), inicialmente, existe dois tipos fundamentais de homens:



1º Os que não se saciam em ter segurança. (Imoderados)




2º Os que se saciam mantendo-se sob reduzidos limites. (Moderados)



Hobbes faz um jogo conceitual interessante ligando estas duas concepções a uma questão comum, no caso, a necessidade dos homens em fazer tudo o possível para manterem suas vidas.




A conseqüência é que os dois tipos de homens no “Estado de Natureza” (EN) agem como imoderados, pois, tendo que antecipar os ataques uns dos outros para garantir suas vidas, todos são latentes inimigos em potencial.



Na concepção hobesiana de (EN) todos os interesses estão em contínuo choque. E, neste caos de vontades que lutam umas contra as outras para se firmar, não existem regras universais coativas, pois falta a todos um legislador comum.




Para se garantir existente cada homem deve, necessariamente, eliminar ou subjugar o outro. Isto porque não existia lei ou propriedade no (EN). De outra parte, há o constante temor da morte.



No interior deste contexto Hobbes pensava que havia uma certa igualdade entre os homens. Já que o mais fraco de corpo pode vencer o mais forte, ou por astúcia, ou mesmo se unindo a outros homens, ocultando essa biológica desigualdade que existe.



Ainda há outro fator que legitima essa concepção de que no (EN) os homens estão em igualdade. Diz Hobbes que se essa desigualdade fosse absoluta e impassível, o mais fraco, receando perder sua vida, reconheceria a superioridade do mais forte. Então, ele aceita submeter-se às determinações do último para ao menos continuar vivo. Nesta situação, nada pode acontecer senão duas coisas:



1ª Os homens continuam se digladiando continuamente, colocando tanto a espécie como também suas vidas individuais em risco;



2ª Os homens não permitem esse risco de auto supressão, fazendo com que esse egoísmo natural se torne um egoísmo disciplinado por um órgão exterior que obrigue a todos a cumprirem seus pactos.



Para Hobbes a saída do (EN) para a “sociedade civil” (SC) emerge da necessidade natural em manter-se vivo, evitando, assim, a morte violenta.


Esse cálculo racional é efeito da astúcia.





A prudência parece ser o resultado da astúcia. Quem não é astuto, não percebendo a contingência de ter o outro como inimigo no (EN) termina por ser uma preza fácil de ser usada e arrebatada.




“O homem é o lobo do homem”.


Mas cada lobo não pode ser o lobo de si mesmo. Isso contraria a busca pela vida!



Essa luta perpétua e universalmente espalhada, no (EN,) é, ao mesmo tempo, o máximo de liberdade e o máximo de ausência de liberdade.


Essa contradição ocorre pelo seguinte: Posso fazer tudo o que me agrada, mas o outro também. Cedo ou tarde, de um modo ou de outro, nossos interesses irão colidir, o que levará, necessariamente, à discórdia.



Essa liberdade absoluta deságua em uma constante e absoluta luta comum. O resultado de tal processo é que tanto o homem que quer ficar tranquilo, gozando de uma vida sossegada, quanto àquele que quer sangue, discórdia e lutas, todos eles são o inferno uns dos outros.




Nesta relação é muito difícil haver um entendimento mútuo entre todos quando não há um agente imparcial capaz de gerir as determinações estipuladas com vistas ao bem comum.



Para Hobbes todo pacto precisa de coação externa para ser validado. Sem a força ninguém se obrigaria a fazer aquilo que lhe é exteriormente imposto. Por isso que poder e sociedade nascem juntos.



Esse poder absoluto que é transferido ao governante tem de ser absoluto para tornar possível a superação da condição de guerra reinante no (EN). Isto porque não há alternativa alguma para assegurar ordem e segurança, havendo o constante e iminente perigo de morte violenta.


Hobbes desmonta a concepção tradicional de que os homens livres são bons e estão “por natureza” na comunidade para gozarem de sua condição privilegiada.


É interessante que na visão hobesiana do surgimento do estado é pela liberdade que o estado de discórdia se mantém. Pois, se os mais fracos tivessem plena consciência de sua inferioridade, da inconseqüência de lutarem, da impossibilidade de vencerem os mais fortes, eles imediatamente se submeteriam aos fortes salvaguardando suas vidas, ainda que vivessem até o fim de suas vidas como escravos.


Com o pacto feito e a (SC) constituída, a razão maior que leva um súdito a obedecer ao soberano é a de instaurar a paz impedindo a morte violenta de todos. Por outro lado, se o governante não for capaz de realizar sua contrapartida do pacto, não há motivo racional para qualquer homem que seja abdicar de seu direito de lutar por desfrutar de todas as coisas. Justamente por isso que ainda que o pacto transfira ao soberano poder ilimitado e o direito de subjugar a todos, isso não tira de cada um o direito de defender sua própria vida.


Se o soberano for mau administrador, sendo imprudente na condução do estado, incosenqüente nos impostos, aplicando castigos e usurpando os bens dos súditos, logo trará a discórdia no estado incitando a todos a se rebelarem em busca de justiça. Ademais, o soberano não pode exigir que um súdito se mate ou se fira, pois, ainda que no estado civil todos acordaram pelo pacto que devem aceitar as determinações do soberano, ainda assim, cada um permanece tendo que cuidar de si mesmo, não devendo não lutar para manter-se vivo.




Na visão de Hobbes o estado é uma criação dos homens que ganha vida e autonomia própria para aplicar poder coativo. O estado é absoluto e indivisível. 

De certa forma, o estado não deixa de ser um ente metafísico, simbólico, pois todos temos que internalizar a coação exterior exercida pelo estado como necessária, mesmo que não haja realmente em todos os instantes um poder coativo real por perto.



Vemos que essa característica coativa do estado pensado por Hobbes já antecipa certas teses acerca da punição, às quais, mais tarde, Foucault apresentaria em “Vigiar e Punir”. 

Para Hobbes a força, a ordem, a justiça, a reparação dos danos, a punição, são instrumentos utilizados pelo soberano para continuar firmando os cumprimentos dos pactos.


Na medida em que seguir a lei se dá quando cumprimos os pactos. Ainda que seja assim, de fato, se formos comparar as duas condições de existência pensadas por Hobbes, uma no (EN) e outra na (SC), vemos que a condição humana de absoluta liberdade é ainda mais miserável que sua atual condição de ter que prestar obediência a um soberano.




Quando o soberano impõe leis, todo homem com o mínimo de bom senso pode fazer o melhor possível para melhor viver em paz se adequando às determinações da lei, já que o soberano e as leis têm a obrigação de oferecer segurança a todos. 

Por isso que, quando um homem não quer aceitar tais determinações e é justo que ele as aceite, ele nega tanto o pacto feito com o estado e a si mesmo.


BIBLIOGRAFIA BÁSICA

HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução: João Monteiro e Beatriz Nizza da silva. São Paulo: Abril Cultural. 1974. (Coleção Os pensadores)

Autor: Edgard V. C. Zanette - Utilização exclusiva para leitura e estudos, sendo proibida a utilização e divulgação.


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quinta-feira, 18 de maio de 2017

A ciência não pensa: o problema da técnica em Heidegger


O problema da técnica aparece em certo momento da modernidade, na medida em que há uma interrogação sobre o estatuto epistemológico e ontológico da técnica. Primeiramente há que considerar que a técnica não é um lugar, visto que não podemos apontá-la de modo claro. O campo do técnico não encontra um lugar próprio, a técnica é totalizante. A técnica é a produção humana de artefatos exteriores ao homem que visam uma certa efetividade na constituição de um fim. Já a tecnologia difere da técnica. A tecnologia parte dos dispositivos científicos. É um fazer mais complexo e que se aplica a um campo determinado, com projetos e cálculos próprios da prática científica.
Pensando a questão da técnica Heidegger coloca a seguinte questão: Qual é hoje (século XX) o aparecimento do outro, da diferença com relação a técnica? Infelizmente, Heidegger constata a impossibilidade de apresentar um outro, um grande outro que se oponha ontologicamente ao império do técnico. Pensando sobre o desenvolvimento da técnica, torna-se latente uma contradição apresentada por Heidegger. A técnica se manifesta de forma peculiar na modernidade, mas nessa passagem não há uma simples evolução.

Na modernidade a técnica não permite o aparecimento do absolutamente outro. Isso é complicado, considerando que o outro sempre existiu. A importância do outro é fundamental, pois ele impõe um limite. Ao ficarmos sem o outro com o advento da modernidade, é difícil encontrar um campo fenomênico onde a técnica não impera.

O problema da técnica surge assim como um problema central a ser superado pelo pensamento heideggeriano.
O problema da diferença mostra-se nessa impossibilidade de pensar o diferente como limite. Aqui voltamos à questão husserliana: Como é possível o aparecimento do fenômeno? Dizendo de outro modo, qual o estatuto da consciência intencional? 

O projeto heideggeriano abre uma analítica existencial a partir do ente privilegiado que abre mundo e sentido, o dasein. Diferindo nesse ponto de Husserl, Heidegger preocupou-se em determinar o aparecimento do fenômeno sem afirmar um eu em que a transcendentalidade possa operar em um aparato categorial.

Ortega e Gasset, retomando esse projeto heideggeriano, procurou pensar o eu que não é a consciência e nem o mundo, mas haveria uma outra instância, uma coabertura em que pensa-se um singular absoluto, sem um aparato categorial, em que emerge uma abertura sem um mundo empírico absolutamente determinado, mas que mesmo assim se abre a esse singular. Esse conceito de singularidade é fundamental a essa retomada de Ortega e Gasset.

Heidegger pensa que não cabe em sua investigação uma definição  em termos genéricos, como geralmente a tradição o fez, desse ente que nós somos. O que há é a pura produção do mundo. 

Para indagar acerca do que seja essa pura produção do mundo, Heidegger questiona quais são as circunstâncias que a técnica promove. Neste sentido, a técnica permite ainda uma dinâmica fenomenológica de abertura? Essa questão volta-se ao problema da morte heideggeriano, na pergunta sobre o porque se preferir viver a deixar de ser? Só há esse tipo de questionamento porque o homem não é uma sofisticação do animal, com seus instintos desenvolvidos. Essa explicação que apelava ao instinto falhou e deixou uma lacuna a ser superada. O homem vive por escolha, porque escolheu, não por natureza, por instinto. Mas se o homem escolhe viver, porquê? Por quê querer estar no mundo?

O conceito de vida, dessa vontade de viver, não é um ato biológico e necessário. E mesmo se voltarmos à questão das necessidades materiais, mesmo na busca por satisfazê-las o homem procura não somente realizá-las, mas também suprimir o tempo em que elas acontecem. 

Como viver não é um ato involuntário e automático de nossa natureza, o homem decide autocriticamente viver. Mas esta escolha implica em uma difícil possibilidade, a possibilidade da morte. A possibilidade da morte é a angústia de estar consciente da auto-supressão. E esta questão é a mesma que o problema acerca do estatuto do ente, pois porque existe o ente e não antes o nada?, questiona-se Heidegger. Essa questão Heidegger retoma dos gregos, postulando a possibilidade do negativo e da nadificação. 

O nada não é o nada absolutum, mas é a a diferença que não é ente em hipótese alguma. Essa diferença que não é ente em hipótese alguma. Essa diferença entre o nada não é substancial, somente o ente é substancial. Para Heidegger o nada é aquilo que em hipótese alguma pode ser ente.

A natureza (physis) é a circunstância, o que circunscreve o homem. Há uma união originária entre ambos, o que não ocorre com a técnica, pois a técnica não é natural.  A produção da técnica não serve para satisfazer as necessidade, pelo contrário. O impulso originário de satisfazer suas necessidades foi suprimido pela técnica. 

Os animais não podem desalojar-se de seus instintos naturais. Essa coisa que é o homem, por sua vez inventa e executa coisas extranaturais consigo mesmo e com tudo aquilo que lhe circunscreve. A técnica modifica, desse modo a relação do estar-aí no mundo. Aqui temos o problema do estatuto da existência da modificação do homem em estar no mundo. Sob este aspecto basta lembrarmos o mito de Prometeu, que toca na questão da condenação do humano por ter desafiado a ordem imposta pelos deuses.

Assim como prometeu tentara deslocar a ordem natural, a técnica também é uma deslocação, uma reforma da natureza humana que é contrária à adaptação humana ao meio. Sobre esse aspecto da técnica, Ortega afirma que o homem é uma animal no qual só o supérfluo é necessário. 

Quem coloca essa necessidade do supérfluo é a técnica. Mas esse necessário é a negação do originariamente necessário. Isso apresenta-se muito claramente na busca contínua pela economia do esforço e pela supressão do tempo. Com essa deslocação da técnica aquilo que era uma imposição da natureza, a satisfação de necessidades, torna-se uma inversão, pois o homem impõe à natureza uma sobrenatureza, anulando a angústia originária, modificando ontologicamente o estar-aí no mundo.

A técnica na modernidade é um desabrigar. É uma exploração que impõe à natureza a pretensão de fornecer energia. 

A técnica intima a natureza a extrair a seus serviço todas as potencialidades armazenáveis de cada ente. O que é interpelado deve fornecer tudo o que é requerido. Esse a-disposição  pauta-se no controle e na segurança que constituem-se as marcas fundamentais do desenvolvimento explorador. 

O técnico, nas palavras de Heidegger, “desafia o próprio ente a estar sempre disponível”. Lidar ontologicamente com a técnica é recolocar o próprio modo de compreender a essência.
Em busca de se pensar a técnica ontologicamente o que está em jogo é a determinação do próprio movimento reflexivo da filosofia. Neste sentido, Heidegger retorna a essa tradição que o antecedeu. Investigando o movimento reflexivo da modernidade, Heidegger constatou que Kant em sua busca por superar o dogmatismo metafísico da modernidade, teria criticado a concepção cartesiana de tempo. 

Diz Kant: por que o cogito é presente e não devir? Por que o cogito não é uma apercepção transcendental fundante? Hegel por sua vez, teria retomado os projetos cartesiano e kantino, afirmando que mesmo kant tendo nos mostrado o mar, sua superação de Descartes não chegou a bom termo, pois não teria conseguido nos molhar. Desse modo, Kant apontou o âmbito do impensado mas não teve a coragem de invadi-lo e Hegel fechou o seu sistema com um télos absolutamente problemático. Contudo, no interior destes embates, há uma outra objeção a kant que determinou o discurso filosófico dos séculos XIX e XX. 

Heidegger se volta, sobretudo, a essa questão, a saber: seria válida a supressão da Metafísica feita  por Kant?

Em busca de se pensar a técnica ontologicamente o que está em jogo é a determinação do próprio movimento reflexivo da filosofia. 

Com a técnica a impugnação kantiana deixa de ser absoluta e torna-se necessário retornar às questões ontológicas. Deve haver outro caminho, pois se não pode apresentar-se um pensamento do fundamento infundado, caímos na técnica. E mesmo quando nos voltamos para as estruturas que tornam acessível aos outros entes aquilo sobre o que se discorre, que é a linguagem, o discurso apofântico,  a questão da técnica põe em xeque até mesmo essa estrutura.

Com o declínio do idealismo alemão, o discurso positivista dominou a  segunda metade do século XIX. Mas esse domínio não se dá por completo, considerando que o discurso positivista não supera o metafísico, mas se sobrepõe ao mesmo. 

Ao pressupor a subjetivação do mundo, o discurso positivista acredita cegamente em uma evolução do pensamento que se expressaria na ciência. Mas se de um lado, não é mais possível aceitar as figuras clássicas fundantes. De outro lado, a ciência positiva não é suficiente para se sair desse impasse. Heidegger procura, desse modo, pensar o estatuto do existente sem cair no dogmatismo metafísico. Para tanto, é preciso pensar o estatuto da técnica ontologicamente, pois pensá-la epistemologicamente é estar no âmago da ciência positiva. 

O problema da epistemologia é que ela se mantém como um meta-relato. Ela não é ciência mas diz o que é ciência. A epistemologia define o que é cientificidade e estabelece um critério de verdade para ciência de fora da mesma.

Já na pós-modernidade não haveria mais espaço para grandes relatos metafísicos entorno da fundamentação do conhecimento. Há novos tipos de produção de saber, múltiplos e dispersos. Contudo, essa condição da pós-modernidade define o saber de uma maneira não menos problemática que suas antecedentes, pois hoje ser é ser transmitido

Por ser transmissível, há a proliferação de sentido como pura circulação, como circulação contínua, como flexibilização contínua. A técnica seria uma produção do homem, na medida em que é impossível separar o humano de suas ferramentas materiais. Há uma dimensão na qual homem, o simbólico e os instrumentos materiais são unidos, visto que os atores humanos, em seus mais diversos papéis, interpretam e refazem as técnicas. Mas se a técnica possui esse aspecto determinante ao homem, cabe perguntar: se a técnica é fundamental para o aparecimento ou se ela é apenas privilegiada?

Se pensar o devir é pensar a técnica, como afirma Heidegger, uma sociedade permanece condicionada a esse condicionamento que a técnica lhe impõe. A técnica condiciona, mas por outro lado, estranhamente ela abre possibilidades, ao condicionar exemplos de novos fenômenos. 

O homem, neste caso, produz coisas que por sua vez modificam e produzem diferentemente o próprio homem. Por vezes ocorre a complexa situação em que as próprias técnicas por si mesmas se impõem independentemente da própria racionalidade humana. A técnica não segue a racionalidade. Por essa fluidez, as técnicas são desprovidas de qualquer essência estável.

Heidegger considera que podemos interrogar ontologicamente o Ser perguntando: Ser é ser transmitido tecnicamente? Não há espaço para um método epistemológico clássico a ser rigorosamente seguido, como ocorre em Descartes, por exemplo. Há um instrumental ontológico sem voltar à ontologia clássica. Os positivistas pegam Kant para afirmar: devemos abandonar completamente a metafísica. Entender Kant como uma teoria do conhecimento é um dispositivo central da tese positivista. Neste caso podemos indagar: há ontologia ou epistemologia em Kant? 

Heidegger afirma que Kant expõem uma ontologia, o que levou ao seu fervoroso debate com Cassirer, defensor da tese oposta. Assim , para Heidegger pensar uma ontologia fundamental é superar a metafísica dogmática  que se centra na busca pelo fundamento infundado. O projeto heideggeriano é o de uma ontologia da diferença e do devir.

No questionamento Heideggeriano sobre qual o sentido do mundo? Saber o que é o ser é interrogar pelo estatuto do existente. Mas como é possível que o existente tenha sentido mesmo antes de sabermos como esse existente funciona? 

Para Heidegger o problema da metafísica é o problema do esquecimento do ser. A metafísica voltou-se exclusivamente ao próprio ente e não para o ser. Nesse sentido, desde Platão a história da filosofia é a história do esquecimento do ser. Como ente é tudo aquilo que presentifica, o território do ente é qualquer campo fenomênico possível, pois tudo é ente e fora dele não há mais nada. Tudo que de algum modo é, que se apresenta a essa coisa que sou, é ente. Há o puro aparecer, como uma pura explosão de ente. O nada é a diferença pura. Cada presentificação do ente oculta o nada que permite esse aparecer. Essa manifestação é linguagem, pela linguagem o sentido se abre enquanto presença do ente. “A linguagem é a morada do ser”.

O presentificar-se do ente acontece, é a abertura onde a presença se dá, essa abertura é o Dasein. Aqui a pergunta grega feita pela filosofia de Heráclito é retomada: Por que existe o ente e não antes o nada? A verdade originária do ente é o próprio espaço originário no qual o ente se dá, é o desvelar do ser, (alétheia). A  alétheia não é adequação, como a adequação era compreendida na modernidade. Heidegger desenvolve o modo epocal de indagar acerca do ser, em “Ser e Tempo” Heidegger defende que ser é tempo. Mas se fora do ente há o nada, pressupõe-se um nada do ente: “o ser é o nada do ente”. 

Este nada não é negatividade e carência, não é um nihil negativum. Essa é uma diferença ontológica que não é substancial. Há uma distinção, neste caso, entre o ôntico e  o ontológico. Ôntico se remete ao ente, enquanto coisa. Ontológico se remete ao ser, enquanto sentido da coisa. Perguntar ontologicamente acerca do ser é construir o percurso da historicidade do ser, mas não de sua historiografia. Nessa reconstrução o ser se oculta desvelando o ente hoje a partir de um modo de ser técnico. Não há ente hoje que não seja técnico.

A técnica não é um fenômeno circunscrito, o problema da técnica é a procura pela total determinação das coisas. De um lado, essa procura se liga à analítica existencial, ao modo do Dasein viver um acontecimento. De outro lado, discute-se a própria mobilização total de radiações que podem abarcar tudo.

 Esse reconhecimento da capacidade totalizante da técnica apela à necessidade de pensar a técnica como manifestação epocal. Por conseguinte, pensar a técnica é pensá-la em seu acontecimento epocal. Para Heidegger o modo de ser do homem se dá em sua historicidade e não em uma antropologia filosófica.

Ser é um acontecer. Ser é o sentido do mundo, horizonte hermenêutico do aparecimento do ente. É o modo próprio como objetos dispersos se tornam mundo. Mas a dinâmica da manifestação epocal do ser não responde senão a uma análise prévia. Não há télos,  tampouco eterno retorno. É algo trágico. Pois não há como preparar-se para o que virá, isso é destino. Destino é no sentido de uma composição singular. Não podemos ser livres no sentido pleno do termo. 

A própria possibilidade da liberdade é aberta pelo destino. Esse conceito tão controverso é desenvolvido por Heidegger com o intuito de eliminar dispositivos mecânicos que guiariam o aparecimento. Apesar deste aspecto trágico e singular do pensamento heideggeriano, por outro lado, há sentido no mundo, e aqui no âmago desta abertura somos livres. Neste âmbito somos livres porquê o mundo se compõe de singulares infinitos, não há como determinar a priori o que é o ser. Somos criados no próprio acontecer do existente, nós não fazemos o mundo, o mundo nos faz.

Ser livre é entender o acontecer do mundo em sua totalidade, que enquanto totalidade é a totalidade de todo e qualquer sentido. Por isso que se fala no pensamento heideggeriano em uma compreensão pré-ontológica, justamente porquê o sentido dessa questão originária já está dado previamente. E não somente neste caso, mas para qualquer questão que possamos colocar, antes se considera que há mundo

Essa primazia do sentido do mundo explica porque Heidegger considera que epistemologia e moralidade são perspectivas filosóficas secundárias, na medida em que elas já fazem parte de um mundo, pois o sentido do campo de sentido dos objetos é um problema ontológico.

A técnica não é a mesma coisa que a essência da técnica. A técnica é uma instalação, um instrumentum. Por um lado, a técnica é um meio para fins. Por outro lado, a técnica é um fazer do homem. Enquanto considerada como essa instalação, o que permite ontologicamente que ela se manifeste assim? Se tudo é organizado sob o modo de aparecimento do técnico, a própria  explicação de como o mundo faz sentido se remete à totalidade técnica.

A procura por pensar a essência da técnica e não sua condição de possibilidade. Heidegger não quer recair na questão da subjetividade. Pensar a  essência  da técnica é compreender que o ente está absolutamente reconhecível, o ente está cada vez mais exposto e quantificado. A técnica é algo mais que um simples aparecimento. O ente está aí à disposição do técnico, é um estar aí útil à mão. Há o domínio global da técnica. Por essa característica global a técnica se constitui numa forma de produção de verdade. “A ciência não pensa”, ela não faz uma interrogação originária de seu próprio sentido. 

A técnica é um modo de aparecimento da verdade da época, o mundo desaparece no técnico. A disponibilidade total é o que constitui a técnica, pois nunca antes um modo de aparecimento havia sido tão dominante, impondo o seu modo de disposição ao próprio ente que abre mundo. É onde o esquecimento do ser implica o maior grau de ocultamento do ser.

Heidegger discutindo com a tradição remonta à noção de causalidade em Aristóteles e pergunta-se: Por que as quatro causas aristotélicas possuem um caráter unitário? Criticando a concepção aristotélica Heidegger mostra que  a causa é o que compromete à uma outra coisa. É o comprometimento enquanto o ser-com, um aparecer conjuntamente. Esse conceito heideggeriano  não seria o de causa eficiente ou final que manifesta na mecânica. Pois a causa inicia e não finaliza a coisa. Contudo, ainda não se determinou qual seja o instrumental que reside no causal? 

O ocasionar é o que define a essência no sentido grego. Esse ocasionar remete-se à outros conceitos retomados dos gregos por Heidegger que são fundamentais à sua explicação. Os principais conceitos são o de apofainestai (trazer à luz), lógos  (recolher com sentido), poinsis (aparecer, no sentido de produzir) physis (o que a partir de si emerge) e alétheia (veritas, verdade como adequação). Todos esses conceitos retomados por Heidegger indicam que o problema da produção, do aparecimento da técnica não é factual, se torna factual, mas é originariamente ontológico. Esse ocasionar é o que leva à luz ao que se apresenta. Mas com o advento do técnico o aparecer é uma pura produção instrumental.  

A técnica é um modo de desabrigar, onde acontece a aletheia. Esse modo de desabrigar armazena como fonte de energia o próprio ente. O ente torna-se um depósito de energia. A consequência é que esta disponibilidade faz aparecer somente o ente, já o ser está completamente esquecido.

O ente, qualquer que seja, está aí disponível como fonte de energia ou de manuseio. Está a serviço da técnica e de suas trocas. A técnica não deixa fendas possíveis, não é possível estar fora da técnica. Mas como dar um passo reflexionante a mais que a dominação global da técnica? O pensamento em geral se encontra sob o domínio da técnica. Como o técnico manifesta-se de forma pouco ortodoxa, só é possível operar uma investigação ontológica sobre a técnica de forma distinta dos moldes tradicionais. 

Mas  ainda há espaço para pensar fora da técnica se tudo é atravessado pelo técnico? Heidegger responde que sim, o poetar é um questionar originário que pode não seguir o domínio da técnica.

A a arte é aquilo que faz criar mundo, dá sentido para a existência. Um modo breve e singular que abre sentido, e desse modo, rompe estruturas de ocultamento do ser. Heidegger invoca a arte para poder pensar a técnica para poder pensar a técnica, de um modo que não seja técnico. Sendo assim, a arte, como poetar, possui o privilégio do próprio pensar.


Referências Bibliográficas:

Heidegger, Martin. Ensaios e conferências. Tradução: Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel, Marcia Sá Cavalcante Schuback. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2001.


Notas de aulas - Autor: Edgard V. C. Zanette - Uso exclusivo para leitura e estudos.

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quarta-feira, 17 de maio de 2017

Introdução ao pensamento filosófico: A filosofia como campo de batalha





Nada mais atual que pensarmos o presente, em vista do passado que nos constitui.



Voltemos, pois, a tratarmos da atitude filosófica, para então pensarmos a filosofia em nosso presente.


Geralmente se busca ensinar a atitude filosófica a partir do significado da palavra “filosofia”.


Segundo uma perspectiva tradicional, por volta do século VI ac., de maneira formidável, certos sábios e pensadores gregos ganham o status de “amigos do saber”.



As virtudes do filósofo, assim como a natureza do filosofar, ambas perpetuariam um projeto irrevogável imanente à racionalidade.



A racionalidade se distanciaria da sedução e persuasão próprias à arte de ensinar dos sofistas.



Os processos lógicos, a ligação com um pretenso saber que se perceberia como mais relevante que o mito e a religião, e outras conhecidas especulações, visam justificar a eminência do filosofar como produto de um milagre na história que explicita um universal desejo de verdade.



Aristóteles explicando o papel da “sophia” (sabedoria)




Pensemos, em primeiro lugar, que o sábio sabe tudo, na medida do possível, sem ter a ciência de cada coisa em particular. [...] Ademais, àquele que conhece com mais exatidão e é mais capaz de ensinar causas, consideramo-lo mais sábio em qualquer ciência. E, entre as ciências, pensamos que é mais sabedoria a que é desejável por si mesma e por amor ao saber, do que aquela que se procura por causa dos resultados, e que aquela destinada a mandar é mais sabedoria que a subordinada. Pois não deve o sábio receber ordens, porém dá-las, e não é ele que há de obedecer a outro, porém deve obedecer a ele o menos sábio. (ARISTÓTELES, Metafísica, A 982 a).


O filósofo não deveria filosofar sobre o sentir, pois os sentidos "são fáceis" e universais.


Esta tese não é inovadora, remontando às origens da filosofia, visto que Parmênides em seu poema "Da Natureza" já havia lançado uma guerra com vistas a desvincular a via da verdade, da lógica e do pensar, da via da opinião, dos sentidos, do erro e da ilusão.


Não que Aristóteles menospreze os sentidos, ao contrário, o estagirita era um empirista e realista. No entanto, ele considera que há uma Filosofia Primeira que supera a natureza do sentir, visto que se a todos é permitido o acesso à satisfação produzida pelas sensações, mas o sábio é o único que estuda a ciência das causas e princípios.


Dominando as causas e não amando a sabedoria por seus resultados, a sabedoria do sábio é o que lhe garante um posto privilegiado de ser aquele que dá ordens em vez de recebê-las.



Seguindo a análise da passagem acima da Metafísica de Aristóteles, o saber filosófico ser caracterizaria por:



1) remeter a totalidade e abarcar a universalidade;


2) ser um saber livre e desinteressado;


3) manifestamente procuraria dominar as causas, pois não se contentaria com aparências e contradições, mas envolveria uma atitude crítica.




Esta atitude crítica chamada de [thauma] “admiração”, “assombro” ou “espanto”, seria um puro e desinteressado desejo de saber. Vejamos outra passagem da Metafísica de Aristóteles que explicita o aspecto crítico do filosofar:



Com efeito, foi pela admiração [thauma] que os homens começaram a filosofar tanto no princípio como agora. [...] E o homem que é tomado de perplexidade e admiração julga-se ignorante (por isso o amigo dos mitos [filómito] é de certo modo filósofo, pois também o mito é tecido de maravilhas); portanto, como filosofavam para fugir à ignorância, é evidente que buscavam ciência a fim de saber, e não com uma finalidade utilitária. (ARISTÓTELES, Metafísica, A 982 b).


A Filosofia como tradutora de sentido e como campo de batalha



A Filosofia não está em todas as configurações históricas e seu modo de ser é a descontinuidade.


No entanto, há um sentido fundamental da Filosofia, hoje, que não está pautado em considerá-la tão somente como a “ciência do ser enquanto ser” ou como a mãe de todas as ciências.



Condições da Filosofia 
Alain Badiou


● Os procedimentos genéricos, a partir dos quais é possível “acontecer” verdades, são:


● 1) Ciência (matemática);


● 2) Artístico (Poema);


● 3) Político;


● 4) O amor


Duas condições do Filosofar atual



A Filosofia manifesta um caráter de “traduzir” o acontecer de certos processos que já constituem em si mesmos pensamentos.



O caráter argumentativo e interpretativo do filosofar se liga a um outro não menos importante, o qual manifesta combates ideológicos nos acontecimentos históricos do devir humano.



Da necessidade para a possibilidade do filosofar



Estes acontecimentos podem ser ou manifestar procedimentos de verdade ou não, mas o pensar que os acompanha pode contribuir de forma iluminadora.




A Filosofia não pode ser obtusa ao ponto de negar contribuir, pensar e iluminar certas atrocidades históricas que acontecem no desvelar do fluir histórico-social.


Pensar junto com...o acontecer


Situação Filosófica



● “[...] impõe a existência de uma relação entre termos que, em geral, ou para o opinião estabelecida, não podem ter relação. Uma situação filosófica é um encontro. Um encontro entre dois termos essencialmente estranhos, um a respeito do outro”.



● (BADIOU, Circunstances 2 – Filosofia del presente, p. VII)


Encontro heterogêneo: 
Oposição entre saber e Poder


● Caso Sócrates X Cálicles no diálogo Górgias de Platão


● (BADIOU, Circunstances 2 – Filosofia del presente, p. VII).


● Equipolência no campo argumentativo-interpretativo:


● entre justiça e injustiça há que haver uma medida comum que supere a incomensurabilidade entre dois âmbitos discursivos no embate ideológico?



A verdadeira vida está presente!



● Contra o pessimismo do “Pós Segunda Guerra Mundial”, Alain Badiou sugere algumas tarefas da Filosofia em relação as situações filosóficas:






● 1) Iluminar as eleições fundamentais do pensamento.


● 2) Iluminar a distância entre o pensamento e o poder, a distância entre o Estado e as Verdades.


● 3) Iluminar o valor da exceção, das rupturas que incidem sobre o conservadorismo social.

● Grandes tarefas da Filosofia: deve tratar da eleição, da distância e da exceção. Ao menos a partir do momento em que a Filosofia é algo que tem importância na vida, resultando ser mais que uma disciplina acadêmica.


(BADIOU, Circunstances 2 – Filosofia del presente, p. XI-XII)


Referências Bibliográficas:


● ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Tradução: Mário da Gama kury. Brasília: Ed Universidade de Brasília, 4* edição, 2001.


● ________________. Política. Tradução: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret, 2002.


● ________________. Metafísica, livros IV e VI. Tradução e notas: Lucas Angioni. Campinas: Unicamp, 2* edição, 2003.


● BADIOU, Alain. Filosofía del presente. Tradução: Alejandrina Falcón. Caracas, Venezuela: Monte Ávila Editores, 2009.


● ________________. L’Être et l’Événement. Paris: Seuil, 1988.


● ________________. Manifeste pour la Philosophie. Paris: Seuil, 1989.


● ________________. Éloge de l’Amour (Com Nicholas Truong). Paris: Flammarion, 2009.


● ________________. La Philosophie et L´Événement (com Fabien Tarby). Germina, Paris, 2010.




segunda-feira, 8 de maio de 2017

Como ser feliz na desgraça ou adversidade: O estoicismo e suas recomendações





Sêneca e o estoicismo


A filosofia estoica é inspiradora. Por outro lado, ser estoico é uma saga não aconselhável! Isto porque a ideia de superar as paixões, ou mesmo aniquilar nossos apetites, se mostra, na maioria das vezes, impossível.


O homem é um cidadão do mundo, nos ensinam os filósofos gregos helênicos!


Hoje, com tantos problemas em relação à imigração, a ideia de nacionalismo parece inevitável. Ilusão nossa! Desde os gregos, eles mesmos romperam com a ideia de uma cultura una, indissolúvel, fechada, e aceitaram a mistura com os orientais, macedônicos, persas, etc.


De fato, a imigração traz problemas, sobretudo quando ela é econômica ou/e política, como é o caso dos nossos colegas venezuelanos que estão se refugiando no Brasil.


Qual o caminho a seguir? Fechar os portões ao outro, ou abri-los, porém, deixando-os à sorte? 


E se não damos, sequer, conta de nossos problemas, de nossa própria miséria, como ajudar o outro a superar a sua?


Com as eleições na França e Alemanha, notamos o quanto este tema é atual e requer discussão séria e aprofundada.


Para os estoicos, o homem é um cidadão do mundo, capaz de viver tanto na glória de uma cidade, ou em sua decadência, ou mesmo, em um cidade que não seja sua, ou, se necessário, no isolamento completo.






Saber viver, pois, requer coragem de ultrapassar as relações de necessidade.


É preciso, pois, saber seguir o fluxo das coisas, e fugir, ou se isolar, caso a sorte nos leve a tal.


Para o homem consciente, a inquietação constante é fonte de dor. Por isso, a felicidade é possível, desde que evitemos a dor. Mas como evitá-la? Para os estoicos, o dever ético, bem como a vida serena, seriam remédios para as perturbações desnecessárias.


Informações breves e relevantes sobre conceitos estoicos:


O Estoicismo nasce com Zenão de Cítio (334-262 ac.). Ao que tudo indica, a divisão estoica da filosofia em lógica, ética e física foi fundada por ele. A escola fundada por Zenão ficava no local com o nome “pórtico pintado” (Stoa poikile), daí muito provavelmente provém o termo “estoicismo”. Um dos temas fundamentais do pensamento estoico é a racionalidade. Para eles existe uma ordem racional universal (logos).


Outros conceitos fundamentais:


ATARAXIA: imperturbabilidade – ausência de inquietação. É uma forma de resolver o problema da felicidade pela via negativa. A felicidade é possível desde que não vivamos o seu contrário: a dor. Para os epicuristas a felicidade está no prazer estável, enquanto que para os estoicos está na indiferença pelas paixões e pelo domínio das emoções (autarquia – a condição de autossuficiência do sábio). De outra parte, a felicidade, segundo os cínicos, se assenta na renúncia a qualquer tipo de necessidade, e para os céticos, na epoché (suspensão do juízo – pois nada é mais isto que aquilo – não havendo verdades absolutas).






DEVER: Fundamento da ética estoica, segundo a máxima “vive conforme a natureza”, à qual significa respeitar o “logos universal” (razão universal), a natureza humana e as ações aconselhadas pela razão.


Iniciação ao pensamento estoico, com base na filosofia de Sêneca.


SÊNECA (4 ac. – 65 dc.) nasceu em Córdoda (Espanha). Recebeu uma privilegiada educação, se lançou à carreira pública e foi preceptor e depois conselheiro de Nero. Acusado de traição pelo antigo discípulo, foi obrigado à um retiro forçado que durou anos, e, por fim, ao suicídio.






Sugestão de leitura para introduzir-se na obra de Sêneca: “Da Tranquilidade da alma” - Cap. IV: Doutrina pessoal de Sêneca; Cap. VIII: Maus efeitos da riqueza; Cap. X: Como se portar na infelicidade; Cap. XI: Superioridade e desprendimento do sábio.






Referências Bibliográficas:


SÊNECA, Lúcio Aneu. Da Tranqüilidade da alma; Medéia; Apocoloquintose do divino Cláudio. Tradução e notas de Agostinho da Silva [et al.] In: Epicuro/Lucrécio/Cícero/Sêneca/Marco Aurélio. 3ª ed. São Paulo: Abril Cultural, 1985. Coleção Os Pensadores.






Observação: Os textos abaixo são expostos com fins de estudos, sendo eles, como assinalados, parte da coleção Os Pensadores, devidamente citada. Não reproduzir este texto e estas citações.






Cap. IV: Doutrina pessoal de Sêneca


IV — 2. Aqui está, segundo minha opinião, o que deve fazer a virtude e aquele que deseja a virtude: se o destino triunfa e lhe tira os meios de agir, que ele não se apresse em virar as costas e fugir, largando suas armas e tratando de procurar um abrigo, como se existisse um lugar no mundo onde se pudesse escapar do destino: mas que ele imponha somente maior reserva à sua atividade e procure com perspicácia algum emprego que lhe permita tornar-se outra vez útil à cidade.


3. A carreira militar lhe é proibida? Que ele pretenda as magistraturas: está ele reduzido à vida particular? Que advogue. O silêncio lhe é imposto? Que ele dê a seus concidadãos o apoio mudo de sua presença. Mesmo o acesso ao fórum lhe é perigoso? Que nas residências particulares, nos espetáculos, à mesa, ele se mostre companheiro honesto, amigo fiel, conviva moderado. Ele não pode mais cumprir com seus deveres de cidadão? Restam-lhe os deveres de homem.


4. Daí o princípio do qual nós, estóicos, estamos orgulhosos: o de não nos encerrarmos nas muralhas de uma cidade só, mas de entrarmos em contato com o mundo inteiro e de professarmos que nossa pátria é o universo, a fim de oferecer à virtude o mais amplo campo de ação. Excluem-te do tribunal, expulsam-te da tribuna e dos comícios? Volta-te e olha: quantas extensões imensas, quantas nações se abrem para ti! Por mais vasta que seja a parte do mundo que te é vedada, aquela que te é permitida será sempre maior.


8. Assim, a melhor regra é combinar o repouso com a ação, todas as vezes que a atividade pura nos for perturbada por impedimentos acidentais ou por condições políticas: pois jamais todos os caminhos nos serão interditados, de modo que não nos reste nenhum meio de praticar uma ação virtuosa.


















Cap. VIII: Maus efeitos da riqueza


VIII — 1. Passemos ao domínio das riquezas, principal fonte das misérias dos homens: pois, comparando-se todos os nossos outros perigos, prazeres, doenças, temores, desgostos, sofrimentos e preocupações de toda espécie, com os males que nascem do dinheiro, será deste lado que muito claramente penderá a balança.


2. Figuremo-nos como se suporta mais facilmente não possuir do que perder; e perceberemos que a pobreza tem muito menos tormentos a temer e muito menos riscos a correr. Pois é um erro pensar que os ricos aceitam mais corajosamente suas penas: que o corpo seja grande ou pequeno, as feridas lhe são igualmente dolorosas.


3. Bíon disse com fineza: "Não é porque se tem mais cabelos sobre a cabeça que é menos desagradável sentir arrancá-los". Não é diferente no caso do pobre e do rico, e seu sofrimento é o mesmo: o dinheiro se apega tão intimamente à alma, que não se pode arrancá-lo sem dor. É, aliás, eu o repito, mais suportável e mais simples nada adquirir do que perder alguma coisa: daí vem que se vê um ar mais alegre nas pessoas que a fortuna jamais visitou do que naquelas que ela traiu.


4. É o que Diógenes compreendeu na sua sublime sabedoria; e dispôs-se de tal modo que nada lhe pudesse ser tirado. Chama isto pobreza, necessidade ou miséria; dá a esta confiança não importa que nome afrontoso: eu cessarei de julgar Diógenes feliz, quando tu me achares um outro homem que não tenha nada para perder. Ou eu me engano, ou é ser rei viver cercado de pessoas rapaces, de trapaceiros, de bandidos, de ladrões e ser o único no mundo que está ao abrigo de seus crimes.


5. Se se duvida da felicidade de Diógenes, que se duvide também da situação dos deuses imortais, e que se pergunte se eles não são infelizes por não possuírem nem propriedades, nem jardins, nem terras valorizadas pelos braços de mercenários, nem capitais colocados com grandes juros na praça do comércio. Não é uma vergonha estar fascinado pela riqueza? Vamos! Volta-te para o céu: aí verás deuses despojados, dando tudo ou nada conservando para si. E, pois, pobre, no teu parecer, ou semelhante aos deuses imortais o homem que se despoja de todos os bens que dependem da fortuna?






Cap. X: Como se portar na infelicidade






X — 1. Todavia, eis que tombaste em qualquer situação difícil, sem que hajas feito nada para isso: a adversidade pública ou particular passou-te um laço pelo pescoço, laço que não podes mais nem desapertar nem arrebentar. Lembra-te de que os desventurados que são peados começam por se revoltar contra os pesos e as cadeias de suas pernas; e que, desde que eles começam a se resignar, em lugar de se revoltar, a necessidade lhes ensina a suportar sua sorte com coragem e o hábito torna-a suportável. Encontrarás em qualquer situação divertimentos, descansos e prazeres, se te esforçares para julgar teus males leves, antes de considerá-los intoleráveis.


2. O melhor título da natureza ao nosso reconhecimento é que, conhecendo todos os sofrimentos para os quais estávamos destinados na vida, para abrandar nossos padecimentos ela criou o hábito que nos familiariza em pouco tempo com os mais rudes tormentos. Pessoa alguma resistiria, se, ao continuar, a adversidade conservasse a mesma violência que tem na primeira desgraça.














Cap. XI: Superioridade e desprendimento do sábio


4. Retornar para o lugar de onde se vem: que há de cruel nisto? Quem não


souber morrer bem terá vivido mal. É preciso, pois, começar por despojar a


existência de seu prestígio e por colocá-la entre as coisas sem valor. Somos hostis aos gladiadores, diz Cícero, quando eles querem, custe o que custar, bter a vida livre; nossa simpatia é granjeada quando se torne evidente que eles a desprezam. Nossa situação é a mesma, pois quantas vezes morremos, vítimas do nosso medo de morrer!


7. Eis a doença, a escravidão, minha casa que desmorona e se incendeia: nada de tudo isto é inesperado para mim. Eu sabia no meio de que caos a natureza me condenava a viver. Quantas vezes ouvi na minha vizinhança prorromper a voz das carpideiras; quantas vezes vi passarem diante da minha porta os archotes e as tochas que precedem os funerais prematuros! Freqüentemente ressoou ao meu lado o fragor de uma construção que desmoronava; muitas pessoas às quais o fórum, a cúria ou uma conversação acabavam de me reunir, foram arrebatadas durante a noite. De quantas mãos, fraternalmente unidas, a morte rompeu de repente o aperto! Por que me admirar, quando eu me vir, um belo dia, colhido pelos perigos que jamais cessaram de me rodear?


8. A grande maioria dos homens, ao começar a navegar, esquece-se da tempestade. Jamais eu me envergonharia de citar um mau autor, por uma boa intenção: Publílio Siro, poeta mais vigoroso do que os trágicos e os cômicos, quando renuncia aos gracejos vulgares do mimo e às palavras feitas para o público das galerias, no meio de tantos outros versos cujo tom se eleva não só acima do estilo trágico, mas também do cômico, escreveu: "Aquilo que pode ferir um pode ferir todos os outros". Se nos convencermos profundamente desta máxima e se, ao assistirmos às inúmeras desgraças que cada dia caem sobre nosso próximo, pensarmos que elas podiam muito facilmente cair sobre nós, seremos pessoas armadas muito tempo antes do ataque. Não há mais tempo para nos fortificarmos, quando o perigo já nos alcança.


9. "Eu não imaginava que isto me aconteceria!"


"Jamais se acreditara que isto seria possível!" E por que não? Onde está, pois, a



riqueza, que a miséria, a fome e a mendicidade não podem alcançar. Onde está a magistratura, cuja pretexta, o bastão augural e o calçado nobre não são acompanhados de acusações humilhantes, da crítica do censor, de mil infâmias e do supremo desprezo da multidão? Onde está a onipotência, que não é ameaçada pela destruição e pelo esmagamento das violências de um senhor ou de um carrasco? E um longo intervalo de modo algum é necessário: no espaço de uma hora passa-se do trono aos pés do vencedor.