sábado, 6 de maio de 2017

Maquiavel: realismo político e a arte de governar


    

Maquiavel (1469-1527) nos mostra que a ética de um governante (príncipe) deve ser moldável, isto é, ela deve ser capaz seguir o fluxo das coisas e agir de todas as formas para manter um estado saudável, e o governo equilibrado. 

Todas as ações do príncipe, desta forma, sempre precisam ser voltadas para o bem do “todo”. O governante, é claro, não governa para si. 

Eis a diferença capital entre as lições de Maquiavel e a prática política atual em nosso país. Certamente o atual presidente do Brasil não é “maquiavélico”. Se o fosse, governaria melhor. Mas voltemos à Maquiavel!


O filósofo nos ensina que o governante deve fazer o necessário para o bem comum, sobretudo, ao povo, pois mostra em “O Príncipe” o quão pernicioso são os estados voltados a satisfazer os interessas das elites perigosas. Ao se lançar à busca da “verdade efetiva“ da natureza humana, Maquiavel se depara com homens que agem e são bem diferentes daqueles pensados pela tradição filosófica que o antecedeu.

 Maquiavel parece ser o primeiro pensador a esforçar-se por separar o âmbito bem circunscrito da política das determinações estabelecidas por princípios metafísicos advindos de fora dos problemas político-sociais concretos.

 A grandiosidade desta novidade também possuiu grande impacto no âmbito da ética. Para Maquiavel a ética possui determinadas nuances que não podem estar encerradas em princípios eternos e imutáveis, aplicáveis a tudo e a todos. 

Sua compreensão do humano concebe que “o conflito é de todas as coisas pai...”, bem no sentido heraclitiano. 


A ética que pode ser benéfica para um pai de família não o é para o governante de um estado. 

Vemos que isso contrasta em muito com a tão tradicional posição aristotélica, que fundamentando todo o agir humano na busca do sumo bem, levado a cabo pelo exercício da virtude, compreensão esta apresentada em Ética a Nicômaco, dogmatiza uma teoria do meio-termo que possui aplicabilidade absoluta. 

Por sua vez, em O Príncipe, o filósofo florentino “vê”, por todos os lados e em todas as épocas, homens que tendem às suas inclinações, se “desvelando” egoístas, covardes e ingratos. 


Em uma Europa cercada de incontáveis conflitos políticos, religiosos e sociais, o impacto desse novo pensamento nos séculos XV e XVI foi enorme, porém, o tempo não obscureceu a força da clareza desta obra que ainda se faz presente com relevância nos dias atuais. 

Neste sentido, é admirável os elementos que no interior do pensamento maquiaveliano possuem uma relação lógica precisa. 


Não utilizando abstrações metafísicas, Maquiavel não trata de homens que devem ser deste ou daquele modo, mas apresenta-os conforme os fatos da história desde sempre os explicaram. 

É sob esta perspectiva que expõe uma dialética entre o povo e os grandes. O povo quer desenvolver todas as suas vontades, potencialidades e vícios, sem, contudo, ser coagido de qualquer modo que seja, fazendo o que estiver ao seu alcance para viver como lhe apraz. 

Do outro lado deste jogo de forças estão os grandes, querendo, por sua vez, aumentar mais e mais seus poderes, seus bens, e o poder que eles já possuem sobre o povo, afunilando os interesses destes às suas próprias vontades, utilizando-os como instrumentos da manutenção de seu próprio poder.


No desenrolar dessa dialética é notável a posição tomada por Maquiavel. Vivendo entre os séculos XV e XVI, teve a clareza de antever que o fundamento de um estado não pode ser escorregadio e conflitante entre o todo e suas partes. 

O povo nada mais ambicionando que estar sossegado, não quer sofrer, pois cada homem do povo já sofre de um modo ou de outro em sua própria condição de lutar incessantemente por prover sua subsistência e a de seus filhos. Maquiavel alerta que quando o príncipe é sábio, perspicaz, toma o povo como o fundamento de seu estado. 

O povo é o fundamento mais sólido de um estado na medida em que é fácil ao príncipe antecipar suas vontades e controlar seus apetites, pois o povo, enquanto um todo com a característica comum de não querer ser oprimido, é como se fosse uma mesma e una massa homogênea.


Segundo a perspectiva de Maquiavel, quando sabemos de antemão o comportamento de uma determinada coisa, nos é fácil manusear-lhe conforme queremos. O problema, na verdade, está no outro lado desta situação, isto é, nos “grandes” (elite). 

Como já afirmamos anteriormente, os grandes já possuem poder, e querendo mais e mais, realizam suas vontades e apetites subjugando e dominando o povo. Realizando essa iminente e constante vontade de querer, os grandes também estão em profundo contraste com os interesses dos outros poderosos, bem como em dissonância com as vontades do (governante) príncipe. 

Seguindo a lógica destrutiva deste combate, Maquiavel considera primordial ao príncipe tomar uma posição fixa e combater a outra oposta. O príncipe deve defender o povo e debilitar os poderosos para que estes não realizem golpes de estado ou sedições que desestabilizariam os pilares de sustentação do estado. 

É por isso que o homem que chega ao poder com a ajuda dos grandes encontrará maiores dificuldades para dar ordens e governar segundo suas deliberações, já que sempre terá de fazer inúmeras manobras políticas, adulando uns, sendo adulado por outros, unindo uns, separando outros, coisa que “enche o saco” e é perigoso para aquele que governa. Já com o povo é diferente, pois, quando o príncipe estabelece uma ordem, o povo, geralmente, obedece. 

Isso porque os homens do povo estão habituados a obedecer sem contestar, e se contestarem, o príncipe pode punir quem não aceitar suas determinações, pois é fácil punir homens que dificilmente poderão ter força para retrucar tais deliberações. 

Quando um príncipe se mostra bom, justo e virtuoso, o povo lhe obedece. Com a amizade do povo um príncipe terá quem o escute e o ajude na adversidade. 

Já com os grandes é diferente, se um príncipe pune um nobre terá contra si todo um império de homens em latência de se voltar contra ele. No primeiro sinal de dificuldade, ou maquinam sedições para tomar o poder, ou fogem sem mais explicações.


Há um momento importante e esclarecedor no capítulo XV de O Príncipe, no qual Maquiavel registra suas intenções metodológicas, para logo depois assentar sob quais pressupostos um príncipe deve agir. 






“Minha intenção não é descrever sobre assuntos de que todos os interessados tirem proveito, julguei adequado procurar a verdade pelo resultado das coisas, mais do que por aquilo que delas se possa imaginar [...] Assim, é preciso que, para se conservar, um príncipe aprenda a ser mau, e que se sirva ou não disso conforme a necessidade” (MAQUIAVEL, 2000, p. 99). 






Vemos nesta passagem a introdução de novas categorias acerca do justo e do injusto quanto às ações humanas no âmbito político. O conceito “necessidade” ganha força no modo como o filósofo concebe as manobras políticas. 

A lógica do poder privilegia as ações que seguem as pistas assinaladas pela contingência, ao invés de se guiarem em um bem transcendente às ações humanas conflitantes que são postas na vida política. 

Em um mundo repleto de maldade não há como o homem que aspira ao poder, que quer ser o governante, ser indistintamente e completamente bom. 

O príncipe, sendo um homem importante para a manutenção da ordem no estado, ele deve possuir todas as ferramentas que o ajudam a ter plena manutenção do poder. A “virtú” e o vício não podem estar definidos de antemão. A liberalidade se contrapõe à miserabilidade. Mas esta contraposição deve ser burlada pelo príncipe, utilizando tanto uma quanto a outra conforme a necessidade. 

É devido a isso que ele deve sempre aparentar ser liberal. É um erro quando um príncipe espolia o povo para guardar para si, mostrando-se miserável e mau governante. Porém, quando se apropria de impostos, mesmo que excessivos, mas reverte-os para poder melhor governar, com mais recursos, com mais obras, dando mais empregos, melhorando o estado e mostrando a todos que o estado prospera, essa miserabilidade aparente que, transforma-se em liberalidade. 

A grande sacada do príncipe é saber manusear tais instrumentos, na medida em que pouco importa como ele haja “na verdade”.


A excelência moral, para o governante, é mais abrangente e complexa que aquela exercida por um homem comum. 

É muito mais vantajoso, ao príncipe, mostrar-se cruel a ser considerado excessivamente clemente, como se fosse “frouxo nas rédeas do governo”. Por isso é importante esforçar-se por balancear a relação entre o ser temido e ser amado. O príncipe deve ser os dois. 

Os súditos devem amar o príncipe, respeitar sua grandiosidade e ver nele a personificação da possibilidade de realização de sua própria existência. 

Mas, por outro lado, o príncipe tem de ser temido, no sentido de ser respeitado verdadeiramente, para que seus súditos sigam as leis e as determinações dele, se enquadrando naquilo que deles o príncipe espera. 

Porém, se for impossível, em uma dada situação, ser tanto amado quanto temido, que o temam. Pois ao ser amado, um príncipe pode cair nas amarras da sedutora bajulação, e isso é tanto perigoso quanto impróprio aos interesses do estado.


A essência daquilo que o príncipe “é”, na verdade, metamorfoseia-se no parecer ser para o povo. 

A imagem do príncipe se coloca com a sutileza de seduzir o povo, se mostrando complacente, de tal maneira que o povo considere que o soberano é um amigo próximo, disposto a salvar e a zelar sempre por ele. 

A “virtú” do príncipe está baseada na possibilidade latente de sempre ter êxito em seus empreendimentos. Suas ações calculadas demonstram sabedoria e retidão. Contudo, a verdade é que seu projeto é o de ascender mais e mais ao poder. 

Neste aspecto em particular, a ética que surge neste horizonte da ação humana tem certo desprendimento com relação a ética religiosa e a ética familiar.

A lógica dessa ética dada nas relações políticas segue outros princípios e outros pressupostos que aquela que se dá nas relações familiares e religiosas. A partir deste realismo político Maquiavel foi acusado de diversas formas. 

Sem adentrarmos em tais polêmicas, às quais, geralmente, são sem profundidade ou equivocadas, podemos dizer que, para o filósofo florentino, o princípio primordial de um governante é agir sempre pensando na manutenção do poder para que melhor viva um povo. Para conseguir isto, o governante deve ser sábio e corajoso, e ser capaz de tudo e de afetar a todos os seus inimigos, e mesmo “eliminando-os”, quando necessário. 

Uma vez conseguido isto, aí sim ele pode mostrar-se “bom”, zelando pelo bem comum segundo a ética convencional cristã. 


É interessante que muito antes de poesias como as de Fernando pessoa, com suas atrativas máscaras, ou mesmo nas máscaras de Nietzsche, Maquiavel em seu tempo já problematizara o atrativo conflito que se dá entre parecer-ser X ser. 

Se o “ser” é a totalidade do que “é”, do que tem de ser desvelado, penetrado, trazido a tona, pois está subjacente ao que se mostrar no fluxo. 

Podemos nos perguntar: O que tal “completude” pode assegurar à estabilidade de um estado e à felicidade de seus cidadãos? Nada mais que sonhos e aspirações. 

Se o ser é fechado e de difícil acesso, para Maquiavel é preferível se deparar com a hediondez do que se esfacela, pois isto tanto nos é útil quanto palpável, do que ser seduzido por metafísicas de um ser rígido, passivo, incorruptível, eterno. 

É devido a isso que ao príncipe importam as coisas que são apresentadas em seus efeitos, que se mostram, se apresentando deste ou daquele modo, não importando tanto suas causas. 

Neste sentido, ao ter que matar um estrangeiro poderoso, ou um ladrão incômodo, se um príncipe sofrer em seu íntimo, e mostrar-se fraco, balançar, perdoar a aqueles que precisam, segundo a lógica do poder, ele estaria colocando em risco a própria segurança do estado, pois tais eliminações seriam fundamentais à ordem. É claro que o príncipe deve parecer liberal, magnânimo, piedoso, íntegro, fiel, religioso, humano, justo. 

O “rosto” do príncipe deve ser dinâmico, mas sua aparência deve ser moldada conforme as determinações da contingência. Isto porque o seu íntimo é absolutamente inacessível ao povo, e talvez até a ele mesmo.


Em O Príncipe Maquiavel nos mostra como é enganoso falar de um bem comum universal e abstrato sem antes termos um estado firme, que não balance devido a rebeliões estrangeiras ou internas.

 Como a fortuna é sempre imponderável, o governante necessita de barricadas fortes que segurem as marés perigosas. Para o filósofo a fortuna não é de modo algum uma força do mal exterior a toda e qualquer deliberação humana. 

Ao invés disso, Maquiavel nos fala da fortuna como sendo uma deusa boa, em latência de ser seduzida, como uma aliada próxima, que pode nos ser útil quando a entendemos segundo suas peculiaridades, respeitando-a tal qual ela é. 


A fortuna não está restrita a uma única e mesma lógica. Ela é aleatória, circunstancial de tal modo que escapa ao controle humano. Mas ainda assim não devemos temê-la ou deixar que as coisas sigam seu curso sem nos sentirmos capazes de influir em seu curso.

 Como a fortuna é uma deusa, tal como acontece com as mulheres, é preciso que o homem se mostre viril, corajoso, pronto a resistir às adversidades. Mesmo que em seu íntimo ele seja fraco, covarde, preguiçoso, tosco, não há problemas, pois, a chave está em sua capacidade de seduzir. 

Quando isso for bem executado e a deusa se mostrar em todo o seu esplendor, o homem que no exercício da “virtú” conseguir atrair para si a fortuna não tem a que temer, pois poderá desfrutar da abundância de suas delícias.


A “virtú” política está além do bem e do mal, tomados tradicionalmente, pois há vícios que, ao serem executados, demonstram força e virtude, e trazem estabilidade e prosperidade ao estado. 

Na natureza um animal vitorioso é aquele capaz de viver e perpetuar sua própria espécie, aprendendo com o meio que o cerca, agindo certo no momento certo mesmo que não sabendo de antemão como agir. 

Ele tem de fingir ser outras coisas, ter outras cores, ter outros atributos que aqueles que realmente lhe pertencem, pois tem de seguir tanto sua natureza intrínseca quanto as pegadas da natureza que lhe advém de fora. 


Para Maquiavel, com o gênero humano, não é diferente. E é justamente por isso que a virtude política está ligada de modo indissolúvel à capacidade de se encontrar os caminhos mais apropriados nas mais distintas situações. 

E se a fortuna, por um lado, pode nos afetar, por outro lado, ela não é absoluta acerca de tudo aquilo que somos e daquilo que podemos ser, pois temos uma boa quantidade de poder sobre os acontecimentos em relação às nossas próprias vidas. 

Não somos frutos absolutos do acaso, nem protagonistas de uma peça de teatro já escrita por alguém que nos é desconhecido. Para Maquiavel a necessidade predispõe as ações humanas a serem deste ou daquele modo, segundo os problemas concretos que germinam em cada situação concreta, que depende do contexto específico no qual os homens estão inseridos, ávidos de poder, querendo subjugar uns aos outros. 

Assim, como cada homem está sujeito às inconstâncias da fortuna, todos são seres contingentes com o potencial de praticar tanto o bem quanto o mal. 


O príncipe necessariamente tem de ser capaz de “ver a realidade efetiva das coisas”, por mais cruel, suja e corrompida que ela seja. Ele não pode se fixar na bondade, quando preciso “deve” ser cruel para garantir a estabilidade do estado e do seu poder, que carrega consigo o lugar mais alto da hierarquia do estado. 

Grandes dificuldades são constantemente impostas ao príncipe, pois ele tem que satisfazer ao mesmo tempo os interesses do povo, dos poderosos e do exército. 

Independente dos procedimentos utilizados para conseguir a estabilidade neste contexto de conflitos, o príncipe pode ser temido por todos, mas deve fazer de tudo para não ser odiado. Se ele for odiado não terá paz nem nos momentos de lazer que estiver com sua família, muito menos em seu sono. Pois tudo e todos são inimigos latentes. 


São vários os fatores que legitimam ao príncipe a incessante busca de se firmar no poder, mesmo que a custa das vidas de muitos de seus súditos. Ele deve utilizar, para o bem e manutenção do estado, os instrumentos disponíveis, mesmo que tachados de “maldade”.

 Ademais, quando a fortuna impuser, para que um príncipe mantenha a ordem, que ele traía as regras de boa conduta propagadas pelos preceitos cristãos, eliminado politicamente, ou mesmo “materialmente”, quando necessário, aquele que estorva os interesses do governo constituído. Maquiavel é categórico ao afirmar que a liberdade do soberano em praticar vícios, quando a contingência o impuser, “trazem bem-estar e segurança” a ele e ao povo. 


Embora “chocante”, o pensamento de Maquiavel é lúcido, perspicaz e nos ajuda a compreender a política desde sua época até a atualidade.

 Na leitura de Maquiavel dos clássicos e dos fatos da história ele apresenta um método cauteloso, que mistura o terreno da prática da ação política a partir do uso que devemos fazer dos livros teóricos. 

Este é um grande feito realizado, tornando palpável aquilo que antes era demasiado teórico. Em vários aspectos podemos considerar Maquiavel corajoso, contrastando com toda uma já dada história da política, calcada, inicialmente, na teleologia aristotélica, e que mais tarde foi absorvida e remodelada pelos filósofos cristãos, ganhando uma roupagem de cunho religioso.

 A capacidade sintética de Maquiavel também impressiona, pois ele é capaz de orientar as ações do príncipe, sem, contudo, esquecer de bem aconselhar a todos. 

O interessante de todos estes procedimentos examinados é que, de um modo ou de outro, eles sempre retomam o fato de o príncipe dever manter as “aparências”, sendo bem visto por todos, como um ser da mais impecável ética, possuidor de virtude e de sabedoria incontestável. 

Todavia, essa postura não resulta de um capricho do príncipe, mas em sua busca de assentar o estado em bases sólidas, possibilitando o mais possível o desenvolvimento harmônico dos humanos em sociedade.






Autor: Prof. Edgard Vinícius Cacho Zanette



REFERÊENCIAS BIBLIOGRÁFICAS




Maquiavel. O Príncipe. Tradução: Olívia Bauduh. São Paulo: Nova Cultural, 2000. (Coleção Os Pensadores)
 

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